sexta-feira, dezembro 19, 2008

Hermenêutica e semiótica

"O texto é um piquenique onde o autor leva as palavras, e os leitores, o sentido."

Humberto Eco

Não há ninguém melhor em interpretação, ninguém mais versado em hermenêutica e semiótica que as mulheres, apaixonadas ou não. Estou, aliás convencida que o famoso sexto sentido feminino nada mais é que o famoso sexto sentido feminino nada mais é que uma refinada capacidade de interpretação de subtis sentidos nas acções e nos sinais do mundo que nos rodeia. Somos, diga-se de passagem, treinadas para isso desde pequenas, para vermos o padrão nas coisas e nas palavras, o significado de expressões faciais, de gestos, de acções. É suposto sermos empáticas, atentas aquilo que nos rodeia. E se não o somos de pequenas, somos de grandes, no amor, somos enquanto mães a interpretar gestos e necessidades dos nossos bebés, pequenos demais para se exprimir verbalmente.
A nossa capacidade hermenêutica é um imperativo biológico, essencial à continuidade da espécie. Sendo os homens aquilo que são, uns grunhos, se não fosse a nossa capacidade hermenêutica as relações nunca começariam, ou se começassem nunca se desenvolveriam ou perdurariam para além da primitiva forma de comunicação que é o sexo. É a hermenêutica, ou como diz o Carlos Tê na voz dos Clã, a nossa competência para amar, que mantêm a nossa civilização coesa e funcional.
Como nenhum instrumento humano é perfeito, também a hermenêutica está cheia de falhas e armadilhas. É aqui que entram as palavras do Humberto Eco: se o texto (ou enunciado verbal) é um piquenique para onde nós levamos o sentido, então todas as interpretações estarão correctas, certo? Pois não, minhas amigas, e não sabem o prazer que me dá poder usar a natureza masculina para refutar uma teoria de interpretação literária que sempre achei uma treta, nem todas as interpretações estão certas.
As mulheres, sobretudo as apaixonadas, vêm com toda a atenção todos os enunciados orais (conversas de treta), todos os textos (SMS e afins), todos os gestos, pausas e hesitações, para, a partir destes aferir o estado da relação. Constroem, a partir desta interpretação uma teoria do estado das coisas, modificando o seu comportamento para responder às necessidades deste modelo teórico. Infelizmente para elas, nem sempre estão correctas, espalhando-se ao comprido. Lá porque uma coisa é verosímil não significa que seja verdadeira (ora toma, Humberto!).
É, aliás, muito fácil de ver que os próprios homens conhecem esta nossa fraqueza hermenêutica e a exploram, dizendo e fazendo aquilo que os vai conduzir ao efeito desejado, nomeadamente a reboladela no feno, de preferência sem mais complicações. Não se esqueçam que as canções do bandido, se são eficazes, por alguma coisa é.
De qualquer forma, os nossos erros interpretativos nem sempre se devem a sermos manipuladas pelos homens. Muitas vezes é apenas wishful thinking da nossa parte e pura determinação em fazer a realidade caber nos nossos desejos. Se assim não fosse, se fossemos sempre eficazes e correctas não haveria amores não correspondidos nem mal-entendidos trágicos nenhuns. Como já explanei num texto anterior (a teoria KISS), nós temos a mania de complicar e encontrar sentidos e explicações ocultas na realidade. Mas estes delírios interpretativos raramente, senão nunca, dão grande resultado. Ficamos, diga-se de passagem, é com grandes caras de tacho quando percebemos como a nossa liberdade interpretativa nos levou a becos sem saída dos quais só nos livramos recuando sem grande dignidade. Os homens são lamentavelmente literais, sobretudo quando estão muito interessados ou quando não estão interessados de todo.
A solução para o pântano da hermenêutica passa, em conclusão, por controlarmos criteriosamente o grau de interpretação que aplicamos à vida e às relações. Passa por nos lembrarmos que eles aplicam à vida, sempre que possível, a regra do simplex, nem sequer estão emocionalmente equipados para grandes subtilezas hermenêuticas. E passa, sobretudo, por, sempre que possível, ir directamente à fonte. Se parecer bom demais para ser verdade é porque é, e a explicação mais simples costuma ser a verdadeira. E se ainda tiverem dúvidas recusem interpretações, não aceitem mais que tudo devidamente explicado e clarinho da boca deles. Treinem comigo a pergunta: ouve lá, que raios queres dizer com isso?

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Guilty pleasures

Robert Pattinson as Edward Cullen
(aposto que pensavam que era moralmente superior a isto, não pensavam? Pois não sou...)

ah, e a propósito...


também não sou moralmente superior a vibrar com Bryan Adams .

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Gastrossexuais

Um dos adágios que se ouviam antes era que gordura era formosura. Outro, que se conquista um homem pelo estômago. Apesar de não ser verdade ( um coq au vin impecável empalidece face a um corpinho bikini), este antigo adágio ganhou uma interpretação e uma vida novas. Amigas, contemplem esta nova tribo urbana pós-moderna, os gastrossexuais.
O Deus dos gastrossexuais é, como não podia deixar de ser Jamie Oliver, chef extraordinaire e gajo que mesmo assim é muita gajo, sem afectações efeminadas. Para além de adorarem no altar do Naked Chef e de, imagino, preparar pratos de massa verdadeiramente yummy (as receitas do Oliver nunca desapontam), estes homens têm como objectivo máximo seduzir as mulheres através dos seus dotes culinários. Eles, queridas, têm uma forma de souflé e sabem como usá-la (e isto, infelizmente NÃO é uma metáfora vagamente sexual).

Eu até compreendo a necessidade e o acerto dos homens saberem cozinhar. Eles vivem muito mais tempo sozinhos que a geração dos pais deles e nós, por outro lado, estamos longe de ter a educação de prendas domésticas que as nossas mães tinham. Num mundo incerto, homem que é homem e não quer ir ao take-away tem de saber estrelar o seu próprio ovo, fritar o seu próprio bife, cozer a sua própria batata. É justo e razoável que os homens ajudem em casa, nomeadamente a preparar refeições. Como estratégia de sedução é que não sei bem. Comigo, por exemplo, nunca funcionaria, ou pelo menos não a longo prazo.

Se há vantagens óbvias num homem que distinga um banho-maria de uma máquina de lavar, não sei até que ponto quereremos mesmo um homem com veleidades de chef e gastrónomo às soltas na cozinha. Eu, que efectivamente sei e gosto de cozinhar, daria em doida com um homem assim. Territorial como sou com a minha cozinha começaríamos com elogios à capacidade de execução do prato, chegaríamos ao prato principal lívidos e de dentes cerrados e em menos de um fósforo estaríamos a rebolar pelo chão e a esgadanhar-nos um ao outro, e não no bom sentido da coisa. Claro que para mulheres que não sabem dos muitos e variados usos de um passe-vite um homem que se escravize na cozinha e, simplesmente, lhes dê de comer como se fossem umas princesas é irresistível. Eu é que levanto sérias objecções à escravatura, seja ela de que forma seja, preferindo nisto, como em tudo, um equilíbrio das coisas.

Neste mundo moderno, não sei se já repararam, cada vez que surge uma tribo urbana, esta é ou incompreensível, ou irritante. Primeiro, apropriaram-se dos cremes e dos SPA, os metrossexuais, agora apropriaram-se do avental e da cozinha. É inadmissível. E aviso desde já: se se atreverem a desenvolver o seu lado feminino nos saltos altos ou nas camisas de noite de seda viro freira, juro que viro! E que tal desenvolverem uma tribo urbana útil, uma que fizesse falta, uma que fosse a resposta às nossas preces de mulheres modernas na sala e na cozinha? Deixo já aqui em baixo uma dica:



quarta-feira, dezembro 03, 2008

Foge comigo, Maria

Aqui há uns anos deram-me o Tom Waits. Deram-mo dado, para mim, e fiquem, aliás, sabendo que se desfrutam dele é devido à minha magnanimidade e boa vontade. Sendo que não sou uma pessoa especialmente materialista, foi o presente perfeito, sendo a ponte entre os meus gostos e os dele. É bom termos pontes nestas coisas.
Pois esse mesmo falecido, para além de me dar o Tom Waits, para mim, queria fugir comigo. Iríamos para Paris e viveríamos numa mansarda, eu dos meus livros, ele da arte dele e seriamos ridiculamente felizes e tudo e tudo e tudo. É óbvio que lhe disse que não. Não era prático, não era seguro, era um disparate. Acho que as coisas começaram a morrer um bocadinho ali, mais ou menos a partir da minha sexagésima quinta recusa em fugir com ele. Já a coisa estava nos últimos estertores quando ele me acusava, repetidamente, de não o amar o suficiente, de me amar mais que eu a ele. Eu, convencida que tinha ali à minha frente o meu sete-sóis dito e escrito estava indignada, claro que amava, podia lá ser de outra maneira? Aparentemente podia, mas a ficha só me caiu anos depois, quando me encontrei na mesma posição em que ele se encontrava.
Como nos fizemos espectacularmente infelizes um ao outro, só depois de me ver livre de todas as feridas, fechar todos os fantasmas no respectivo sótão é que percebi que o homem estava coberto de razão. O que, como devem ter sentido, provocou uma alteração do eixo do universo e um sismo de proporções épicas. Mas a razão, essa ninguém lha tirava. Ou se ama demais (e cito-o), ou não é o suficiente.
Eu que amava muito, mas não demais, não percebia o ponto de vista dele. Não queria fugir mas ficar, construir uma coisa sólida e lógica e racional, como se o amor se compadecesse dessas coisas. Para se construir um amor sólido, uma coisa que valha a pena não basta a razão, nunca. É precisa a loucura de deixar tudo e todos para trás, de pôr tudo de lado para fazer a coisa funcionar. Nada mais importa.
Na altura, não queria, nem estava pronta para abdicar de nada, queria tudo. Queria a família, as amigas (e amigOs, ponto de constante discórdia), a rotina e o trabalho e a ele. Evidentemente que não pode ser. Amar é um exercício, como diz o Rilke, de libertação. Do outro, porque preso ninguém ama bem, mas também de nós, de despojamento e de abdicação. Para amar temos de estar dispostos a perder, e a perder não só o que podemos e queremos, mas sobretudo o que não queremos nem podemos. Azar foi esta sabedoria só me ter chegado anos depois, quando já não me dava proveito nenhum. Mas pronto aqui fica. Se lhes pedirem para fugir, pensem nisso. Até que ponto amam?

Esperança


As esperanças são as únicas sobreviventes do naufrágio das expectativas.

quarta-feira, novembro 26, 2008

O que as mulheres querem versão século XXI



Vi na net e não resisti... enjoy
"Para as minhas amigas saberem o que procurar e para os meus amigos saberem o k elas procuram...

Encontra o rapaz k te chama gira, em vez de boa..
k te telefona quando lhe desligas o telemovel na cara...
k fica acordado so pa te ver dormir...
Espera por o rapaz k bja a tua testa...
k quer mostrar-te ao mundo inteiro k fica de maos dadas contigo a frente dos amigos...
Espera por o rapaz k ta constantemente a lembrar-te do quanto signifikas para ele...
e de quanta sorte ele tem de te ter...
Espera por o k se vira pos amigos e diz......'é aquela "

Diabo no corpo


Lembro-me muito bem deste livro, que li quando tinha uns dezasseis anos e sei dizer exactamente porquê : o livro que li a seguir foi um dos livros da minha vida, daqueles que nos marcam mesmo como pessoas. Seria ele O Fio da Navalha, de Sommerset Maugham.
Deste livro ficou-me a memória de um romancezito não muito excitante, passado durante a primeira grande guerra, entre um adolescente e uma mulher casada, mais velha. E de que ela, desculpem-me a frontalidade, era um bocado parva. Da maneira que as coisas estão contadas, parece que o diabo no corpo era só do rapazito. Ela, mesmo mais velha, era mole e indecisa, precisando da ousadia dele para declarar o desejo carnal.
Eu já na altura tinha ideias feministas (sempre tive, diga-se de passagem) e aquilo a modos que me caíu mal. Então só os homens é que tinham o monopólio do desejo? Então às mulheres não restava outra hipótese senão deixar-se arrastar e coagir até à cama? Ora bolas.
Na matriz cultural europeia, não restava muita opção às mulheres senão esta atitude: a de passivas e moles, fracas e indecisas. Porque a manifestar um tantinho que fosse de cooperação ou vontade própria no assunto era arriscado e mal-visto. Não é por acaso que temos a cultura cheia de mitos de bruxas que dançavam nuas e dormiam com o maléfico, de sucubas que sugavam a energia dos homens, de Liliths e mulheres fatais que empurravam os homens para a morte e para a desgraça com o seu apetite sexual insaciável. Não é por acaso que as loiras frígidas e "espirituais" entraram tanto na moda. Mulheres com curvas, sensuais e morenas, com apetite e vontade próprias eram perigosas e muito, mas muito más. Para os homens o apetite sexual "excessivo" era bom, natural e justo, uma marca de virilidade. Para as mulheres só podia ser um sinal de que eram más e só o diabo no corpo justificaria esse desejo. Sim, que deus não permitiria uma mulher que gostasse de sexo. Não era natural.
Quase um século depois do livro ser escrito, e apesar das coisas terem mudado,não mudaram assim tanto. Ainda é suposto os homens terem muitas parceiras e as mulheres poucos. O que, francamentre torna a matemática da coisa confusa e as mulheres em hipócritas, mas whatever. O sexo e o mal estão ainda, desgraçadamente, ligados um ao outro.
As culturas orientais, provando mais uma vez que em muitas coisas têm mais bom senso, têm uma abordagem completamente diferente . O sexo, como força geradora, é uma forma de comunicar com o divino ou, no caso do budismo, de meditação profunda. O sagrado feminino e o sagrado masculino completam-se e não existem um sem o outro. O diabo não está no sexo mas noutras coisas onde deve estar, como na crueldade e na cobiça e no mal. O quer nos faz pensar exactamente o quão civilizada a nossa civilização é, não faz?

terça-feira, novembro 18, 2008

Closer

Há coisas que é perturbador olhar de perto. É como o comprimido do Matrix: a realidade nunca mais é a mesma, nunca. O amor é uma dessas coisas.
Quando se despem as relações da roupagem cor-de-rosa do amor romântico, o que fica nem sempre é agradável ou lisonjeiro: uma data de auto-indulgências e egoísmos avulsos, dois ou três traumas e muitas, mas muitas pequenas mentiras piedosas e cruéis. E o desejo, cru. De perto o amor é um exercício brutal, pouco próprio para almas sensíveis (e sensatas).
Descobri, com o tempo e a experiência, duas verdades imutáveis: primeiro,a vida não é como os nossos pais nos ensinaram e como os media nos querem fazer crer; segundo, é melhor uma verdade dolorosa a uma centena ou duas de mentiras agradáveis e simpáticas. Não querendo perorar, mas perorando, parece-me não sobreviver o amor a este escrutínio tão próximo por causa da eminente superficialidade de todas as coisas. As relações são superficiais, os motivos do amor fúteis e breves. E depois, porque somos criaturas de hábitos e de esperança, partimos para novas paragens, tropeçando de novo nas mesmas pedras em que tropeçámos antes. Também não aprendemos nada com os erros.
Anna é fria e controlada, deixa-se amar; Alice ama, cegamente, fazendo-se vítima por esta cegueira; Dan é inseguro, um pouco cobarde; Larry é violento e cru... e determinado. Nenhum está inocente, nenhum escapa ileso aos incríveis nós que damos nas vidas uns dos outros. Mas também, será que alguém escapa? Não é isso que fazemos tantas vezes, mal aos outros, mesmo sem pensar, mesmo sem querer?
De perto só sobrevivemos ao escrutínio se reflectirmos, se nos analisarmos. Mas reflectir não é agir, é sentar-se a um canto a ver a peça inferior que é a vida. De perto tudo é perturbador. A verdade é. O amor é. Mas antes de perto. Como disse antes, mais vale uma verdade inconveniente que cem mentiras... ou não? Não gostam das coisas de perto?

terça-feira, novembro 11, 2008

Eye Candy



Hayden Christensen
(Mais um pensamento que me manda direitinha para o inferno sem passar pela casa de partida. Oh well.)

segunda-feira, novembro 10, 2008

Blueberry Nights

Os ingleses têm uma palavra, um conceito, na verdade, intraduzível para o português a não ser numa data de frases que sempre gostei muito: serendipity. Serendipity significa uma descoberta casual, mas feliz, assim uma espécie de nirvana, mas em pequenino, aquele momento de ah-ha! Em que, subitamente, e para surpresa nossa, percebemos o mundo um bocadinho melhor e as coisas fazem sentido, uma surpresa agradável, por pura coincidência (eu disse que eram precisas várias frases). Os filmes de Wong-Kar Wei têm sempre esse efeito em mim, essa serendipity, porque, na verdade, sempre achei que ele pensa como eu (ou eu como ele, que a soberba não fica bem a ninguém e eu para pensamentos pecaminosos bem me chega todos os outros).
Quando vi o Blueberry Nights, tão maltratado pela crítica doeu-me um bocadinho a alma. Na realidade percebia perfeitamente onde queria chegar, àquelas noites em que somos náufragos e vemos o mundo passar através de uma janela na noite, ou uma vitrina em que estamos intocados na dor das nossas perdas. Na verdade todos temos o momento em que não somos mais que umas chaves esquecidas num aquário de pequenas e grandes perdas na cidade, sem portas que abrir, sem portas para que voltar.
Lidar com a perda não é fácil, apesar de ser necessário. E nisto o tempo e o espaço são apenas pequenas marcas irrelevantes que não chegam a fazer mossa no grosso da nossa dor privada. Amarem-nos é uma espécie de eternidade. Perduramos naqueles momentos iniciais de amor partilhado onde tudo é ainda possível. Ao afastarem-se, ao afastarem-se de nós é também essa eternidade que morre. Quando partirmos nós, para longe, para o fim, que seremos sem essa eternidade? Um nome? Um talão a um canto, um carro decrépito, um rosto numa fotografia velha? Nada. Mas lidar com a perda é necessário, ou seremos sempre isso, rostos na noite a olhar para dentro, sem pertencer. Passamos pelas fases todas, tão depressa ou devagar quanto nos é necessário a nós, não aos outros: negação, raiva, negociação, depressão, aceitação. E supera-se. Não completamente, não tudo, nem sempre incluindo o perdão. Mas supera-se. Atiram-se para o lixo chaves e esperas inúteis. E se tivermos sorte, muita sorte, teremos risos partilhados ao fim da noite. E a serendipity numa tarte de mirtilos.

domingo, novembro 09, 2008

Bad Hair Day



Nisto, a maioria dos homens tem muita sorte. Um duche, uma lavagem rápida e está a andar. Não chegam a perceber a nossa angústia traduzida em filas de sérum e amaciador, rolos e máscaras , gel , laca e secadores alinhados nas prateleiras da casa – de - banho. Se incomoda, se chateia mais comprido, cortam e pronto. Tirando as gerações mais novas de cabelo espetado, não passam mais de um ou dois minutos a olhar para o cabelo e a tratar dele. Já nós não: um bad hair day é garantia de um dia de mau humor e desconforto, em que o mundo nos parece um sítio hostil de gente com cabelo como deve ser em contraponto com o nosso que, como o da Medusa, parece cheia de serpentes vivas e não especialmente amigáveis.
É como, diz uma colega minha, acordar de manhã e ter um alien na nossa cabeça. Uma vez que ele está horroroso, nada mais parece encaixar. A roupa não cai bem, as ideias não funcionam, não nos enquadramos no mundo à nossa volta. Eu costumava chamar a estes dias os dias da bolha, até perceber a correlação entre dias de humidade em que o cabelo frisou e a bolha.
O motivo porque isto acontece a tantas de nós é o facto da relação estreita entre cabelo e feminilidade. Nas cantigas de amigo o cabelo simbolizava o apelo sexual das mulheres. Solto indicava disponibilidade e virgindade , preso indicava maturidade sexual e indisponibilidade de mulher casada. Não é por acaso que, até hoje as mulheres árabes após o primeiro período o mantém escondido debaixo de lenços, a simbologia é a mesma. De modos que um cabelo desgovernado a ir para onde lhe apetece em vez de como nós o queremos nos faz sentir inadequadas como mulheres. Como se fosse precisa mais uma coisa que nos fizesse sentir mal.
Eu, que sempre tive um cabelo ingovernável, sou muito solidária com quem tem dias destes. Demasiado liso para caracóis giros e encantadores, demasiado ondulado para ficar liso e arrumadinho, é uma fonte constante de aflição. Mas eu achava que, pela sua especificidade irritante ,era o único cabelo irritante. Não era. Se puxado o assunto, todas de nós têm bad hair days . E, tal como o resto das coisas giras que vêm com ser mulher, como cólicas e rushes hormonais não há muito que fazer senão aguentar. Não vão mudar e não.

quarta-feira, novembro 05, 2008

O triunfo da esperança



Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
Chegamos? não chegamos?
Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama

terça-feira, outubro 28, 2008

Alta fidelidade

"
Rob: [lying in bed imagining the scene] You are as abandoned and noisy as any character in a porn film, Laura. You are Ian's plaything, responding to his touch with shrieks of orgasmic delight. No woman in the history of the world is having better sex than sex you are having with Ian... in my head"
A personagem principal deste livro tem um problema muito grande (para além de ser um trintão Peter Pan fóbico de compromissos): a namorada deixou-o. Aliás, não só o deixou como o sucessor dele é o vizinho de cima, por demais musculado. Em suma, um espécime superior. Ora o desgraçado passa a vida a torturar-se com fantasias com a ex e o seguinte. Na cabeça dele ela nunca tinha tido tanto prazer como com o seguinte, e isso matava-o. Isto é interessante, porque expõe um aspecto essencial da psique masculina: os homens só dão valor às mulheres quando as perdem. Sobretudo para homens, na sua cabça, superiores. É uma afronta ao ego masculino.
Se repararem nos grandes êxitos dos cantores românticos dos últimos cinquenta anos, verão, com toda a certeza e sem lugar para dúvidas, que consistem num bando de choraminguices de gajos que fizeram asneira e estão a tentar reconquistar, por assim dizer, terreno perdido.
O curioso nisto tudo é o diferentes que nós somos. Nós preocupamo-nos de véspera com quem nos antecedeu e com quem nos sucederá. Eles apenas se preocupam com quem os sucede e só no sentido de poderem ser ultrapassados. Acho que esse é também o motivo de os homens se sentirem traídos por uma traição física mais que por uma emocional. Sentimentos nobres e conversa sentimental estão eles fartos de saber a treta que é (a maioria simplesmente diz o que acha que queremos ouvir e siga para bingo). Sexo que é sexo é que é traição a sério e os emascula, os diminui enquanto homens.
A solução que o desgraçado do livro encontrou foi a mais evidente: curar-se de ser parvo, Peter Pan e fóbico de compromissos. Afinal, a culpa de levar consistentemente patins e ser substituido por versões melhoradas era dele. Desgraçadamente a maior parte dos homens não tem esta clarividência. Antes tivesse. Mas é um bom exemplo para os homens. Pensem prendas de natal...

segunda-feira, outubro 27, 2008

quarta-feira, outubro 15, 2008

From G's to Gents - uma solução

A MTV já não é o que era. Já não passa a música mais importante das gerações, marcando gostos e estilos de vida. Das poucas horas de música que passa, passa o pop mais pastilha elástica possível, o mais comercial e rasca possível. O resto das horas de emissão são dedicadas a reality shows de gosto duvidoso, onde gente é feita à medida, carros e caravanas são amaricados com tunning e famosos mostram o seu duche onde cabem doze pessoas. Em suma, o ideal para matar tempo, e neurónios de puro aborrecimento.
Mas alto, que é isto que se avista ao longe, um pássaro, um avião? Não! Um programa de interesse. A MTV alemã (que isto de se ser teutónico é outro estilo) tinha, há alguns meses atrás um programa fascinante. Trata-se do aclamadíssimo From G’s to Gents, e tem como missão pegar nuns tantos gajos com a mania de ser gangsta e transformá-los em perfeitos cavalheiros, o que é, sobre todas as perspectivas que se olhe a coisa, um objectivo muitíssimo louvável. Sim, que tudo o que tenha que ver com o melhoramento geral da espécie masculina para nosso maior proveito é sempre bom e agradecido.
Nos últimos anos, vi mais metros de boxers de adolescentes que aqueles que gostaria de ter visto. Com o morrer da cultura grunge e consequente abolição de cintos, atacadores e outras formas de manter a roupa próxima de si mesmo, os boxers viram, literalmente, uma nova alvorada. Gangsta que é gangsta, se não mostra ao menos quatro dedos de boxers está socialmente desgraçado. Gangsta que é gangsta se não chama dama à sua miúda e lhe aprecia partes avulsas e desproporcionais ao conjunto (are you an ass man or a breast man?) não merece o ar que respira. A cultura gangsta emanada do rap e do hip hop da moda é extraordinariamente chauvinista. Diz a Pink, e muito bem, no seu Stupid Girls :
“What happened to the dreams of a girl president ?She's dancing in the video next to 50 Cent”
É que nem o eye candy que é o 50 cent sem t-shirt compensa a indignidade de ser uma espécie de objecto giro e, de preferência mudo e outras Rihannices como essas. Assim um programa intensivo que os ensine a ser cavalheiros parece-me absolutamente necessário. Ah, olharem-nos para a cara e não para vinte e cinco centímetros mais abaixo! Ah, o tratarem-nos como criaturas com cérebro, abrir e fechar portas em vez de gritar Damaaaaaaaaaaaaa é logo outro estilo de vida… Isso sim é, a meu ver, serviço público e em prol da comunidade…
Não vi o resultado final da coisa. O episódio que vi tinha os rapazes a meio caminho, já de blazer e boas-maneiras moderadas, mas ainda com addidas brancas caríiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiissimas e sotaque “à gueto”, para parecerem mais duros (mesmo se o mais próximo que tenham estado de um tenha sido a ver as reportagens alarmistas sobre a Cova da Moura na televisão). Mantenho, mesmo assim, o espírito positivo: melhores que o que eram, têm de ter ficado.
Cá em Portugal, atrasados como estamos, parece-me que o programa não passa. Mas a minha cabeça, sempre cheia de uma quantidade incrível de inutilidades, apressou-se logo a traçar uma acção de formação, umas 50 horas, para transformar os gangsta tugas em qualquer coisa remotamente parecida a cavalheiros. Aí vão os conteúdos das sessões. Aceitam-se inscrições, e, como sou uma cidadã com apurado sentido cívico, o curso é gratuito.
Sessão 1- Cuidados básicos e higiene pessoal: os pentes são nossos amigos. Discussão de grupo. Role-play. 4 horas
Sessão 2- Vestuário e moda: como comprar roupa efectivamente do nosso tamanho.Serei um M ou um XXXXL? Desocultação de etiquetas. Sessão de treino com manequim. 4 horas
Sessão 3- Continuação da sessão 2. Elaboração de mnemónicas. Queima em grupo de sapatilhas addidas e sweatshirts 5 tamanhos acima. 4 horas
Sessão 4- As jóias masculinas são o anti-cristo. Palestra e discussão em grupo. 4 horas
Sessão 5- Sou um agarrado de bling bling, e agora? Terapia psicológica (escola Jungiana). Estratégias defensivas contra relógios com brilhinhos neles. 6 horas
Sessão 6- Formas de tratamento feminino: o “Dama”, anátema de vocabulário. Palestra e Role-play. 6 horas
Sessão 7- serei um idiota porque trato as mulheres como objectos? Discussão de testemunhos reais. 6 horas
Sessão 8- O cérebro feminino, mito ou realidade? Palestra com médica convidada. 4 horas
Sessão 9- O cérebro feminino, mito ou realidade? Discussão/terapia de grupo (escola freudiana). 4 horas
Sessão 10- Abrir portas e tratar as mulheres como seres pensantes e com vontade própria causa impotência? Desmistificação da cabala. Teste prático. Entrega de diplomas. 8 horas

terça-feira, outubro 07, 2008

O mundo está cheio de gajas (e de gajos)


Quando olho para trás e me ponho a lembrar de como era eu e, por inerência, o grupo de que fazia parte, só posso constatar o auto-importantes, convencidos e armados em bons que éramos. Metidos até às orelhas no existêncialismo less than zero da geração X e da cena independente/alternativa politicamente empenhada, achávamos que, francamente, éramos os donos da verdade. Felizmente essa certeza passou, bem como a auto-importância e o proselitismo intelectual. Tenho o prazer de constatar que, no geral, somos todos gente bastante normal, sem grandes filmes de alternativo/gothic/dark/morangos selvagens (Bergman, crianças, não Angélico & Cia.) que éramos nos anos 90. Se bem que amaremos sempre camisas de flanela, Sweats largueironas, Doc Martens e Eddie Vedder ganhámos o sentido de humor suficiente para nos rirmos de tudo, sobretudo de nós próprios.
Ainda ontem falava com a minha amiga Su a este respeito: é que parece que vivo numa bolha protectora, e cada vez que saio dela é um choque ao meu sistema. É verdade que tento sempre rodear-me de gente interessante, com quem aprendo sempre mas, minha nossa senhora de todas as graças, o mundo está cheio de gajas e gajas (e uns quantos gajos). Deixem-me explicar.
Não entendam gajas na acepção carinhosamente irónica dada às amigas, ou Doutoras no sentido igualmente irónico com que trato as colegas de trabalho de quem gosto bastante. É gajas mesmo, gajas no sentido de irritantes e chatas, cheias de importância santimónia, Doutoras sem ironia nenhuma, como se vivessem numa plataforma acima das restantes mortais. Querem-me explicar de onde saíu esta coleção de gajas pro-activas cheias de competências e de si mesmas? E expliquem-me lá, afinal que raio vem a ser isto de pro-activa? O que é que de errado há com
activa? Expliquem-me porque é pior ser activa (como os vulcões) e melhor ser pro-activa (como os iogurtes)? E o que é que tem de mal ter capacidades, ter habilitações, à antiga e efectiva, e o que é tão bom a respeito das competências? Ultimamente sinto-me assaltada por estas coisas, estas atitudes pôem-me doente. Sobretudo se acompanhadas como o bife pelas batatas fritas de mente limitada e tacanha, de falta de flexibilidade e de sentido de humor, de auto-crítica. Quando uma pessoa se sente e passa por brilhante por defeito é desmoralizador. Mais que isso, vergonhoso. A sério, protejam-se. O mundo está cheio de gajas (e de gajos), e nem sequer me parece que vão a lado nenhum, estão para ficar.



sábado, outubro 04, 2008

Paul Newman

Como se mede a grandeza de um Homem? Pelo dinheiro? Pelo sucesso? Na minha opinião mede-se pelas suas qualidades morais, nada mais, nada menos. O dinheiro que se ganhou ou herdou, os sucessos que se acumularam são apenas lupas que ampliam as qualidades ou defeitos, as fragilidades de uma pessoa. Pessoas egoístas e fracas apenas usam as coisas que têm para se esconder atrás delas, pessoas boas, verdadeiramente boas, usam o que têm, o muito ou o pouco, para deixar o mundo um lugar melhor que aquele que encontraram. É esse o verdadeiro traço comum de todos os grandes Homens, com H grande. E na minha modesta opinião, Paul Newman era um homem com H grande, uma das últimas grandes estrelas.
A fama é agora uma coisa relativamente fácil. Todos querem os seus 15 minutos, seja pelo que for. Diariamente nos entram pela casa herdeirazinhas fúteis, cujo único valor reside no apelido deixado por bisavós ricos, starletts de ambos os sexos quase orgulhosas dos seus vícios e auto-indulgências, mercadores da sua intimidade por mais uns minutos e exposição mediática. Paul Newman era um dos últimos de uma geração totalmente diferente, em que a fama era secundada por talento, verdadeiro talento, por orgulho e amor pela profissão que tinha. Foi mestre no seu trabalho, tendo participado em filmes tão importantes e significativos que daqui a umas centenas de anos o seu nome será ainda um dos grandes nomes da história da sétima arte, enquanto as autoproclamadas luminárias da sétima arte de agora serão, com muita sorte, notas de rodapé. Mas isto, apesar de muito significativo, não é aquilo que quero realçar.
Como já disse, o que torna um Homem (no sentido de representante da espécie humana e não no género) um Homem, é o ter deixado o mundo num melhor lugar que o que encontrou. Paul Newman é um desses homens. Fez caridade (no melhor sentido possível do termo) a vida inteira. Fundou, expandiu e ampliou uma empresa multimilionária cujo único objectivo era canalizar a totalidade dos lucros para causas meritórias, sobretudo para crianças desprotegidas ou doentes. A perda trágica de um filho para as drogas chamou-lhe a atenção para todos os outros meninos perdidos, e assim, através deles, lhe honrou a memória.
Mesmo que não tivesse sido uma grande Estrela ou um grande Filantropo, Paul Newman seria, ainda, um grande Homem, um Homem com qualidades morais que todos podemos ansiar a ter. Nem todos têm em si grandes talentos, nem todos podem ser filantropos na escala que ele o foi. Mas todos podem ansiar a manter a grandeza moral que ele demonstrou ao longo da vida. Porque acreditem, um homem que amou a mesma mulher cinquenta e tal anos teve, de certeza, uma enorme grandeza moral. Sobretudo quando teve escolhas, e a assombrosa beleza física de que era dono. Poderia ter sido muito mais promíscuo, muito mais inconstante, nunca o foi. A mulher com quem casou (não a primeira, mas a definitiva) nunca foi a radiante beleza que muitas das suas contemporâneas eram. E o casamento deles foi sempre uma rocha firme, um porto seguro. Vi uma entrevista dos dois, o ano passado, na qual se via, a olho nu, o respeito, o carinho, e sim, a paixão que duraram uma vida inteira.
Com os media a jogar sujo, como agora, quando alguém famoso morre rapidamente fazem um obituário relembrando todos os escândalos, todas as falhas. Os de Paul Newman não o faziam, pois tinha a admiração de todos, todos concordaram que tinha morrido um grande Homem, com H grande. E isso é uma bela súmula de oitenta e poucos anos de vida.

sexta-feira, setembro 26, 2008

segunda-feira, setembro 22, 2008

A teoria da tarte de mirtilos


No último filme do meu realizador favorito, Wong Kar Wei, My Blueberry Nights (em português tem o nome, se não estou em erro, de o sabor do amor) , encontrei uma teoria muito interessante nisto de relações, a teoria da tarte de mirtilos. E olhem que é uma teoria sábia e útil. Eu já explico.
Ora acontece que uma das personagens trabalha num café. Nesse café havia uma variedade enorme de tartes e bolos. Ora, chegado o fim do dia, tartes como a de chocolate e de pêssego há já muito tinham desaparecido. Outras estavam a meio, ou sobravam uma ou duas fatias. A de mirtilo continuava intacta. Porquê? E aí sim, reside o centro da teoria, porque não calhava. Não se devia atribuir a culpa à tarte, em si perfeitamente aceitável e bem confeccionada. Calhava era não ter aparecido ninguém a quem pudesse apetecer. Elizabeth , a protagonista do filme, pergunta então ao dono do café porque a continuava a fazer, dia após dia, se não se vendia. E ele respondeu que um dia poderia acontecer alguém querer. E pronto.
Aplicar o conhecimento de tartes às pessoas, que aliás, era o que eles estavam a fazer de forma clara, não é nada difícil. Como a nossa sabedoria popular diz que há uma clara diferença entre cair em graça e ser engraçado, também a há em ser amável e ser amado. E muitas horas de frustração e depressão cabem nessa diferença, oh se cabem. Aquilo que se pode , deve fazer, como à tarte de mirtilos, é aguentar estoicamente e sem amarguras, sem perder a esperança. Não é a vida, tal como a apetência por bolos, aleatória e cheia de acasos?
Digamos que, na vida, são uma tarte de chocolate: bom aspecto, muita saída. Deve dar-lhes isso uma sensação de auto-importância? Nem por isso. Há resmas de gente alérgica a chocolate. Experimentem pôr uma numa comunidade de diabéticos e alérgicos para ver a saída que têm. O bom aspecto , nos bolos como nas pessoas é uma questão de sorte e artifício. Umas natas batidas, como uma maquilhagem ardilosa esconde muitos defeitos. Agora se forem uma tarte de mirtilos, que é massa por fora, sem grande graça, dependem de um recheio saboroso e interessante. E, claro, de gosto pessoal.
Há pessoas de que se gosta logo. Outras, como as tartes de mirtilo, são gostos adquiridos. É preciso sair do habitual para se gostar. Experimentar e conhecer, crescer nas nossas papilas gustativas e nos nossos corações. Nem sempre o fazem, mas quando o fazem, acaba por valer a pena. Digo eu, que sempre gostei de mirtilos, em tarte ou fora dela.
De modos que os dramas que vivemos muitas vezes com a rejeição devem ser vistos da perspectiva da arte: não há nada errado connosco. Não apareceu é ainda aquela pessoa que não pode viver sem mirtilos.

quinta-feira, setembro 18, 2008

A estatística silenciosa




Após aquela obscenidade da morte em directo no BES, os noticiários estão cheios de crimes violentos: assaltos aqui, carjacking ali, tiros, sangue e facadas. Os políticos apanham-lhe a onda e começam a clamar por tudo e mais alguma coisa, que emigrantes para cá, penas pesadas para lá, controlo de armas por além. Não estão errados, mas são omissos. E, de acordo com o credo católico, que estes pilares de direita dizem ser, a omissão é igualmente um pecado. Sabem qual é a criminalidade que mais mortos, de longe, causou este ano? A violência doméstica. Claro que isso não dá votos, ou tantos votos como pegar na bandeira da criminalidade. Jogar com os medos das pessoas resulta sempre num ou outro voto, jogar com consciências pesadas não.
A Espanha, nossa vizinha, há muito tempo já que luta com este problema. Estatisticamente, o número de mulheres assassinadas por violência doméstica é superior ao nosso, mas também a população é mais numerosa. Feitas as devidas proporcionalidades, acabamos por ter números muito semelhantes. A questão é que, onde os nossos vizinhos agem, com campanhas de consciencialização constantes e programas específicos, nós preferimos calar. Resulta politicamente mais proveitoso bater noutros ceguinhos, como os professores, essa súcia de malfeitores, os funcionários públicos, esses facínoras, ou as pessoas que vêm de bairros problemáticos, que por feliz coincidência são de nacionalidade ou etnia diferente da nossa: a culpa tem de ser de alguém em específico, não da nossa cultura, a mais perfeitinha de todas, ou, Deus não permita, nós mesmos.
Não dá para traçar uma demografia específica da violência doméstica. Como a doença, ou a morte, ataca todos os estratos sociais, todos os escalões demográficos, todas as regiões. A violência doméstica não afecta apenas gente de certa idade, ou pobre e ignorante. Dois casos que conheci de perto reportavam-se a mulheres de classe média-alta, não podendo ser atribuída qualquer culpa à falta de cultura, à ignorância ou à pobreza. Uma destas mulheres era uma aluna brilhante na Universidade, apanhava do namorado que lhe controlava todos os passos. A segunda era esposa de um médico e financeiramente independente por mérito próprio. As ausências dela eram justificadas por um misterioso problema de saúde, cujas crises a iam mantendo em casa às semanas de cada vez. Ninguém desconfiava, ninguém fazia nada, era um problema invisível.
Se a sociedade evoluiu em muitas coisas, outras há em que o não fez, ou não tanto quanto deveria. Na nossa cultura é um problema do foro privado e muito poucas vezes alguém de fora diz seja o que for, deixando para a vítima a coragem de denunciar, ou o ónus de calar até onde lhe for possível. Muitas vezes este silêncio paga-se com a vida, com o abuso igualmente dos filhos da relação, e com um ciclo de violência sem fim: crianças abusadas são muitas vezes adultos abusadores. Nisto, como em tudo, as crianças aprendem pelo exemplo. As gerações anteriores de mulheres esperavam, mais ou menos, a violência. Era comum, aceitado socialmente, quase a norma. A nossa geração, e as outras que nos seguem, calam-se igualmente.
Não consigo perceber como se pode ficar numa relação assim. Dizem-me que por amor, mas nenhuma forma de amor que eu conceba aceita ou consegue justificar violência sobre nós ou as crianças. Mas suspeito que a teia dos abusadores seja tão paralisante como a das seitas religiosas, e muito semelhante na actuação. Depois daquele sentimento de carinho e protecção, às vezes um pouco excessivo, vem o corte de relações com o exterior, amigos e parentes, e a mulher fica presa, isolada dentro dessa relação infernal. Não têm (ou acham que não têm) a quem recorrer, quem as ouça ou ofereça soluções. E a verdade é que, apesar de leis cheias de boas intenções, este país não tem estruturas suficientes para dar apoio nestes casos. Poucas vagas em lares de acolhimento, poucas capacidades para dar formação e independência económica às mulheres para poderem seguir em frente, viverem sem o agressor.
É minha convicção que a violência, seja de que tipo for, se ataca melhor pela prevenção que pela punição. O que é é que a prevenção não faz vista, não dá votos nem palmadinhas nas costas dos cidadãos preocupados. E de todas as estatísticas possíveis, há as que dão jeito, e se mostram, e as que se calam. Como esta.

terça-feira, setembro 16, 2008

Risque o que não interessa


O facto de Mika ter feito uma música a propósito das Big Girls, afirmando serem estas lindas é...
a) Entusiasmante e positivo, fazendo ver que a malta também tem direito à vida.
b) Corajoso, nenhum outro artista teve jamais a ousadia de referir, deixar entrever ou sequer aludir de passagem a big girls.
c) Indiferente, por uma música que as enaltece, há milhões a ignorá-las ou, activamente a defender as virtudes de se parecer uma barbie.
d) Deprimente. O Mika é gay, e, portanto, não tem interesse directo no assunto, logo podemos ver a música como uma paródia à malta, ou uma tentativa de colinho, que o temos generoso, para compensar possíveis descompensações da sua figura materna.

quinta-feira, setembro 11, 2008

So what?

Para ilustrar o ponto que queria fazer no post anterior, esta música fantástica da Pink. Prestem atenção à letra, e ao homem razoavelmente giro com madeixas a meio do video... Sim, é mesmo o Carey Heart, o ex-marido dela. Oh, a ironia...


Ok, vai lá buscar a coroa de espinhos ...


Ok, vai lá buscar a coroa de espinhos, já te estás a crucificar mesmo... Esta frase era usada, há muito tempo atrás nos conselhos de guerra, quando uma de nós começava a ter muita, muita pena de si mesma. Não que haja nada errado em termos um bocadinho de pena de nós, afinal, se não damos colinho a nós próprios ninguém dá. Passar pela vida a sentir-se eternamente injustiçada, uma vítima de um destino cruel, isso é que é um bocadinho demasia.
Nós, as mulheres, temos uma certa tendência para, como dizer delicadamente, nos vitimizarmos. Não é que não sejamos vítimas (e uma espreitadela às estatísticas de mulheres assassinadas em casos de violência doméstica, ou de violações e agressões sexuais mostra-o bem), mas também arredondamos um bocado o ramalhete para nos sentirmos umas desgraçadas. É uma questão de estética da dor, como no caso do Menina e Moça do Bernardim Ribeiro, como se sofrer e sermos umas desgraçadas nos transportasse para um, nível superior de existência e fizesse de nós seres especiais. Poi bem, não faz.
Nada de positivo jamais saiu de terem pena de nós, ou nós pena de nós mesmos. Porque a pena é uma indulgência, uma desculpa para não seguir em frente, uma espécie de cobertor, que com espinhos ou não nos agasalha e protege desse grande mundo perigoso lá fora. Mas pensem comigo: de que adianta maldizer o destino e sentir-nos o alvo de uma conspiração para nos tramar ao nível cósmico? Resolve-nos os problemas? Não. Aprendemos alguma coisa com a tragédia? Não. Conseguimos seguir em frente? Não. Pois por isso o melhor é evitar a piscina quentinha de auto-comiseração e seguir em frente. Trust me, been there, done that, got the t-shirt to prove it.
Se é verdade que os homens são uns ordinários (no geral, e salvaguardadas as excepções que devem ser salvaguardadas, e desconfio, são poucas e raras), isso não significa que o peso das desgraças e dos sofrimentos por que passamos recaia exclusivamente neles. Não poderiamos ter previsto? Não tinhamos a responsabilidade de aceitar as coisas mais que pelo seu valor facial em vez de nos deixarmos enredar em conversas e mentiras? O amor, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, exige uma dose considerável de inteligência e sangue frio, de racionalidade. É bom amarmos de olhos fechados, mas é ainda melhor constatar quer esse amor resiste a uns olhos abertos e atentos, não? E depois, se a coisa não resistiu a uma dose de realidade, se acabou, por que raios quereriamos nós pena de quem seja? E então deles, pena para quê? Nem um camião carregado de pena, remorsos e boas intenções vai resolver seja o que for (e para isto é que tenho mesmo a t-shirt para provar).
De modos que o melhor é despregarem-se da cruz e seguir por essa vida fora. Ficarão surpreendidas com o grande e interessante que vida pode ser...

segunda-feira, setembro 08, 2008

Bridezillas



Só há duas coisas capazes de transformar uma mulher -ou um grupo delas – em seres pipilantes e inanes em menos de dez segundos: bebés e casamentos. Que os bebés o façam é normal e perfeitamente razoável: afinal ter bebés é um imperativo evolutivo, uma questão de sobrevivência da espécie, e as mulheres precisam de uma resposta hormonal que as distraia daquilo que o acto de dar à luz implica (doze ou catorze horas de dores giras, anos de noites sem dormir). E depois, os bebés são simplesmente giros. Que os casamentos o façam é, a meu ver, mais inexplicável.
Agora que a época alta dos casamentos, que vai de Maio a Setembro, está no fim, muito caterer, muita florista, muito padre por esse país fora está a suspirar de alivio. É que os casamentos não se limitam a transformar as mulheres em seres pipilantes e inanes. Os casamentos têm a tendência de transformar as mulheres em seres assustadores de quem é melhor fugir sem fazer movimentos bruscos, bridezillas capazes de engolir caterers e floristas, gerentes de boutiques de noivas e pasteleiros que se atrevem a não lhes dar aquilo que querem no seu dia. E as coisas que estas noivas bridezilla querem são muitas e variadas. Aparentemente, quando se organiza um casamento, para dar sorte, tem de se aterrorizar, coagir e de forma geral levar às lágrimas de frustração impotente o maior número de profissionais do ramo, amigos e parentes (às vezes mesmo o futuro cônjuge). Se tal não acontecer calamidades de proporções épicas poderão acontecer e desestabilizar a ordem natural das coisas, lançando constelações inteiras para os abismos de buracos negros, ou obrigando uma noiva a conformar-se com fita cru, ou pior, champanhe, para o ramo, em vez do marfim que realmente desejava.
Nunca desejei especialmente um casamento grande, ou planeei, desde pequena, como seria o grande dia. Suponho que crescer a ir a casamento após casamento das minhas seis tias me tenha tirado o deslumbramento da coisa, sobretudo tendo eu sido a menina das alianças da maioria delas. Tanto tule e gaze, seda e sapatos brancos apertados conseguiram tirar a magia de vestidos volumosos, e concluir que, simplesmente, isso não era para mim. Como não são para mim as dietas miseráveis para caber num vestido demasiado pequeno que mostra impiedosamente todos os defeitos, os acessos de choro para escolher convites, sapatos e esquemas de decoração da sala. Ou as horas de dor de cabeça para sentar todos aqueles parentes de quem não gostamos e que não se dão bem uns com os outros, só porque parece mal não os convidar. Ou a escolha do fotógrafo e as poses e as limpezas de pele e todas as pequenas coisinhas que enchem as noivas de stress e as transformam em seres francamente pouco amigáveis. Francamente, quem se importará se os laços nas cadeiras sejam bordeaux em vez de vinho escuro, qual a diferença? Quem se importa se a tia Gertrudes e a Tia Maximina, que não se falam há vinte e cinco anos por causa de um desentendimento sobre o ponto correcto do doce de abóbora, ficam sentadas na mesma mesa e se pegam à pancada? Vistas bem as coisas, pode ser que animem a peça ligeiramente inferior que os casamentos são e da qual os noivos são apenas os figurantes secundários. A sério, nunca repararam que, depois de tantos nervos e despesa, os noivos são os que menos se divertem? Ah pois.
Sou uma romântica. Muito romântica. Mas suponho que a minha noção de romantismo choca com esta visão tradicional, e um bocado tonta, da festa de casamento. Um casamento é uma promessa. Uma promessa de ficar, de estar com o outro, no bom e no mau. Para promessas não é preciso uma roupa diferente que nunca mais vamos usar, duzentas pessoas que não nos dizem nada. As promessas fazem-se com o coração, a mente, a consciência. Fazem-se com a razão, e se se tem flores ou não na mão, se um carro caro nos leva e traz ou se vamos a pé é irrelevante. O casamento não tem mais garantias de ser feliz se o fotógrafo for bom ou o banquete tiver marisco e uma excelente tábua de queijos. Não é preciso padre, ou papel, nem sequer testemunhas. Porque o que mantém as pessoas juntas é o amor, e o desejo, e a vontade, e a determinação, mais nada, nem ninguém.

sábado, setembro 06, 2008

Fon Fon e os arquétipos culturais


Nada mais seria de esperar de um grupo inovador e quebrador de tabus, como os Deolinda definitivamente são, que inovar ao nível de arquétipos culturais. A contrapor com as cantigas do bandido ao ritmo hip hop dos Doninha (de quem, de resto, gosto, apesar de objectar um tantito a algumas das suas letras), vêm os Deolinda pôr as coisas em pratos limpos: isto do amor é daquelas coisas que acontecem, transpondo barreiras de politica e culturalmente correcto. As pessoas gostam, simplesmente umas das outras.
Desta história de amor, de paixão assolapada por um músico numa banda, e não, não estamos a falar do glamour sex&drugs&rockn'roll de uma banda qualquer, mas banda de música das de fardas iguais, trompetes e oboés e aberturas de Bethoven assassinadas, toda uma mensagem e esperança e liberdade emana. Uma verdadeira lufada de ar fresco no panorama desta sociedade pós-moderna.
Somos todos uns snobes, não, não objectem, somos mesmo. Somos incrivelmente snobes a propósito a roupa que vestimos, dos carros que conduzimos, dos nossos amigos e dos dinheiros que temos ou não temos, dos sítios que frequentamos, e muito, mas muito mesmo, da música que ouvimos. Ser-se jovem implica romper com os hábitos dos nossos pais, com os gostos dos nossos pais, e isso é verdade sobretudo a propósito de música. Se as adolescentes de hoje não objectam a usar as leggings vintage da adolescência das mãezinhas delas, podem acreditar que objectam a ouvir as músicas que lhes encheram os ouvidos (voltem, A-HA, estão aperdoados). Então se falarmos de músicas anteriores a isso, como o fado, ou a música clássica, a reacção é de puro asco. A Mariza e a Ana Moura resgataram um pouco o fado para ouvintes contemporâneos (apesar de Amália ser ainda, por mais hereje que isso pareça, a epítome do uncool), nem o inegável sex appeal dos Il Divo consegue fazer com que gostar de música clássica seja aceitável. E mesmo que não gostemos de música clássica (que gosto), o namorar com um elemento de uma banda filarmónica torna-nos geeks por associação. De modos que este Fon Fon é uma lufada de ar fresco: quem somos nós para pôr limites ao amor?
Isto do amor eve ser como o sol, e nascer para todos. Camaradas uncool, unamo-nos numa só esperança: o fonfon é que conta, e não os nossos hobbies, ou gostos ou whatever. E os arquétipos culturais que vão ver a banda passar ;)


Olha a banda filarmónica,
A tocar na minha rua.
Vai na banda o meu amor
A soprar a sua tuba.
Ele já tocou trombone,
Clarinete e ferrinhos
Só lhe falta o meu nome
Suspirado aos meus ouvidos.

Toda a gente fon-fon-fon-fon
Só desdizem o que eu digo:
"Que a tuba fon-fon-fon-fon
Tem tão pouco romantismo"
Mas ele toca fon-fon-fon-fon
E o meu coração rendido
Só responde fon-fon-fon-fon
Com ternura e carinho.

Os meus pais já me disseram
"ó filha não sejas louca!
Que as variações de Goldberg
P'lo Glenn Gould é que são boas!"
Mas a música erudita
Não faz grande efeito em mim:
Do CCB gosto da vista,
Da Gulbenkian, o jardim.

Toda a gente fon-fon-fon-fon
Só desdizem o que eu digo:
"Que a tuba fon-fon-fon-fon
Tem tão pouco romantismo"
Mas ele toca fon-fon-fon-fon
E cá dentro soam sinos!
No meu peito fon-fon-fon-fon
A tuba é que me dá ritmo.

Gozam as minhas amigas
Com o meu gosto musical
Que a cena é "electroacustica"
E a moda a "experimental"...
E nem me falem do rock
Dos samplers e dicotecas,
Não entendo o hip-hop,
E o que é top é uma seca!

Toda a gente fon-fon-fon-fon
Só desdizem o que eu digo:
"Que a tuba fon-fon-fon-fon
Tem tão pouco romantismo"
Mas ele toca fon-fon-fon-fon
E, às vezes, não me domino.
Mando todos fon-fon-fon-fon
Que ele vai é ficar comigo!

Mas ele só toca a tuba
E quando a tuba não toca,
Dizem que ele continua
Quem em vez de beijar ele sopra

Toda a gente fon-fon-fon-fon
Só desdizem o que eu digo:
"Que a tuba fon-fon-fon-fon
Tem tão pouco romantismo"
Mas ele toca fon-fon-fon-fon
E é a fanfarra que eu sigo.
Se o amor é fon-fon-fon-fon
Que se lixe o romantismo!


quarta-feira, setembro 03, 2008

Considerações sobre activismo


Isto de activismo é uma coisa interessante. Se em pequenos não temos activismos, quando crescemos, escolhemo-los. Por moda, por trauma, por convicção, escolhemo-los. E é um estudo interessante ver quem defende o quê, que causa nos faz levantar do sofá e gritar palavras de ordem. Porque o nosso activismo, como todas as nossas outras escolhas, conta a nossa história, fala de quem somos.
Quando era adolescente, e não sei bem como, desenvolvi uma consciência política, o meu activismo era sobretudo centrado nos direitos humanos. É que, percebem, sou uma pessoa gregária. Uma colega de trabalho é apaixonada por animais, dedicando muito do seu tempo e dinheiro num refúgio para cães abandonados. Diz muitas vezes que lhes prefere a companhia à companhia de pessoas. Eu, que nunca tive um osso tímido no corpo, escolhi a área das pessoas. O que não foi exactamente uma escolha, antes o abraçar das ideias que me pareciam certas. Mas suponho que todas as convicções, políticas, ideológicas ou de activismo são assim.
Alguém uma vez me disse que aos dezasseis é idiota não se ser idealista, e é idiota ser idealista aos trinta. E se bem que detesto frases lapidares e tenha fustigado devidamente o desgraçado por se atrever a implicar que era mole de espírito, a verdade é que o meu activismo mudou, e me dediquei a um tema mais restrito dentro do tema dos direitos humanos, os direitos das mulheres. E a ser, no geral, um bocado cabra. E cada um é seus caminhos. Ser muito idealista está muito bem, mas e as coisas que nos picam e nos moem todos os dias? Aquela minha amiga da universidade que tinha um namorado que nem sequer a deixava escolher o que beber no café e lhe batia? E aquela que ficou jogada numa depressão negríssima porque um idiota qualquer mentiu desnecessariamente? E, sobretudo, os que me fizeram acreditar, como o parvito do comentário aí de baixo que deveria ficar em casa porque não mereço andar na rua, porque NÃO VALE A PENA? De modos que não é esforço perceber que me tenha voltado para o feminismo. Ou pelo menos uma parte de mim, a parte cabra. A que mostro aqui. O activismo não é uma coisa interessante?

segunda-feira, agosto 25, 2008

quarta-feira, agosto 13, 2008

sexta-feira, agosto 08, 2008

A Guerra



Um homem morreu ontem. Que o tenha feito á conveniência dos noticiários, em pleno directo, pode-se considerar apenas um pequeno acaso feliz das forças cósmicas, a apimentar audiências por demais insossas de verão. Hoje de manhã vieram as palmadinhas nas costas e as congratulações mútuas de um trabalho bem feito, toda a gente devidamente aconchegada na parte da razão que lhe cabe excepto aquele que acabou com balas estendido numa poça de sangue, e cujo saco de cadáveres haveria de decorar as notícias da hora de almoço, ou o outro, atingido na cervical com o prognóstico aceitável de muito grave. Menos que isso teria sido inaceitável ao guião do filme. As GOE em posição, e o INEM, e a PSP e todos os outros, os jornalistas e os mirones e os telespectadores num rush de adrenalina e de repente tudo está terminado, o fim orgiástico de duas balas de sniper a dar um fim aceitável à expectativa .
Um homem morreu ontem. Saberia ontem de manhã, ao vestir-se, ao preparar-se para roubar, dinheiro ou vidas, que terminaria umas horas depois, a areia da ampulheta a escoar-se cada vez mais rápido até não haver mais, todas as acções, legais e ilegais da sua vida curta a conduzir ao chão de mármore luxuoso daquele banco, à poluição da arma do sniper? Saberiam os seus pais, quando o geraram e lhe deram vida que seria um caminho inexorável para a mira dos fotógrafos e as câmaras da tv, só com distorção misericordiosa para os reféns?
Ter um filho é um processo lento, pesado, gerá-lo e alimentá-lo e esperá-lo e depois tantos meses, tantos anos de cuidados e atenções para garantir a sobrevivência, o crescimento, a saúde. Acabar com ele demora segundos. Vinte e sete ou vinte e oito até tudo terminar, hoje.
Hoje desfraldaram bandeiras e acenderam tochas e acenou-se ao público. Noutro sítio foram os tanques de guerra, ou os cintos explosivos, ou tantos outros milhares de formas de levar a morte a tanta gente, de levar o luto, apenas de forma mais privada que a de morrer do homem que morreu ontem. Partilhámos todos a intimidade de o ver morrer: a maior parte das vezes nem com a família o partilhamos, os doentes empurrados para lares, camas do hospital, longe das vidas dos vivos, longe das rotinas. E desta intimidade nem sequer um nome, ou uma razão, ou piedade. Em muitos sítios do mundo à pais a chorar a perda de filhos. Espero que o haja também para o homem que morreu ontem. Ao menos isso.

quarta-feira, agosto 06, 2008

Mainada


Bigada pela imagem, Pat.

Orient express e um bad hair day

Não me venham com conversas: férias, férias têm as personagens da Agatha Christie. Sim, pronto, as personagens aparecem mortas com alarmante regularidade e sempre de formas especialmente tortuosas. Mas os sítios eram fabulosos: um Orient Express um Blue Train, os transatlânticos do entre guerras, viajar até à Mesopotâmia ou Egipto, comodamente livres de terroristas extremistas, a Riviera francesa, as casas de campo britânicas... E depois, o estilo, cada um com a sua empregada para fazer e desfazer malas e lidar com detalhes chatos... Uma pessoa não ter mais nada que fazer que escorropichar martinis na beira da piscina e responder às perguntas astutas do Poirot ou da Miss Marple...
Depois, tenho também inveja das pessoas que passam as férias a viver de uma única mochila que transportam consigo e vão fazer couch surfing para sítios como Bulgária ou Eslovénia, ou acampar para a wilderness nem que seja do Gerês. Ah, a liberdade, o minimalismo, a comunhão com a natureza...
Infelizmente para mim, que sou, admita-se o que tem de se admitir, uma porca consumista, nem viajo com o estilo dos primeiros, nem com o espírito zen dos segundos. Serei eu o único ser do planeta a encarar o fazer as malas com uma generosa dose de azia? É que espero que não.
A mala que está ali ao canto, está a olhar para mim com ar malévolo. Eu sei, simplesmente SEI que o que quer que vá para lá vai ser inútil. Um ano, fui com roupas de meia-estação, estavam 45 graus e as férias foram um estudo em frustração suada. O ano seguinte, a roupa já era convenientemente fresca e choveu todas as santas férias. Um ano constipei-me no avião e tive a miséria de andar com a cabeça cheia de ranho o resto do tempo. Seja como for, fica sempre algo esquecido: sapatos ou escova do cabelo ou outro item essencial, que passa despercebido por mais listas e planos que faça.
Mas o pior de tudo, o que mais chateia, é entrar no principio das férias num bad hair day que dura todo o tempo que lá estou. Nenhuma roupa cairá como deve, nascerão borbulhas qual adolescente, suspirarei pelas roupas que ficaram em casa e toda a gente sem excepção terá melhor pele, cabelo e bom humor que eu.
Atesta o melhor do espírito humano o saber que não só passo pelo processo desagradável todos os anos, como ainda por cima passo um tempo considerável a planear e fantasiar as férias. Claro que isso não implica que não desejasse uma criada pessoal para lidar com as malévolas das malas e depois sentir-me culpada por querer escravizar uma semelhante e precisar de levar uma quantidade enorme de tralha atrás de mim para subsistir, enfim, é esta altura do ano mesmo.

segunda-feira, julho 28, 2008

O texto que se escreve a si mesmo


A história é tão boa que não resisto a contar. E não, não são apenas delírios de tia babada, apreciem a sabedoria da nova geração da minha família.
Vejo a minha sobrinha uma vez por mês, mais ou menos, pois vivemos longe. Há dois meses atrás, a miúda, que ainda não tem quatro anos, tinha uma novidade: um namorado chamado Xavier. Apesar de ser um bocado deprimente ter uma sobrinha com uma vida social mais activa que a tia, perguntei, devidamente, pelo Xavier na visita seguinte. Resposta da criança: agora o namorado não era o Xavier, mas o Hugo. Mais uma vez perguntei porquê. A S., já com um ar de sofrimento de ter de explicar tudo à tia um bocado densa explicou claramente:
-Sabes tia, às vezes o Xavier magoava-me e o Hugo é meiguinho.
Achei a explicação eminentemente sábia e mais não disse.
Desta vez, tia preocupada, perguntei de novo pelo "sobrinho" Hugo. A miúda olhou para mim com o ar mais surpreso do mundo:
- Oh, tia, já não namoro com o Hugo. Vou para a outra escolinha e lá há muitos meninos novos para namorar!
Ora toma. Se ao menos nós adultas tivéssemos o bom senso e sentido prático da miúda! Reflictam, como eu o fiz, que este texto de conselhos é dos que se escreve a si mesmo.

terça-feira, julho 22, 2008

Da pesca por arrastão


Homens há que encaram as mulheres como peixe. Preparam cuidadosamente o isco, sentam-se calmamente e esperam que o peixe morda. Há outros que não, nem por isso. Em vez do trabalho que dá apanharem um de cada vez, de escolher o isco mais apetecido para aquele peixe em particular, lançam a rede e o que vier por arrasto, é lucro. E se os primeiros me enchem e desconfiança, pois um homem paciente e calculista é do piorzinho, os segundos não deixam de me divertir em grande medida. Não porque são pouco exigentes, mas sim porque são descarados e honestos acerca das suas expectativas numa mulher. E não há nada mais refrescante que um homem absolutamente honesto, mesmo que essa honestidade o leve a confessar ser um engatatão em série.
Trazia uma T-shirt que o proclamava EL MATADOR, e uma personalidade que combinava com a t-shirt. Como quem não quer a coisa, estou convencida que conseguiria vender aquecedores aos alentejanos nesta altura do ano, e olhem que os 40 graus estão sempre à vista. Em menos de meia hora vendeu um livro dele. A um outro que por acaso até é dono de uma livraria, por isso estão a ver a lata. O segredo, dizia ele, é ser-se sempre cortês e bem educado com toda a gente meninas) sobretudo. Compensa sempre, continuava, porque se não caírem à primeira, caem à segunda ou à terceira. E pelos vistos caem mesmo.
Não era especialmente bonito, ou especialmente alto, ou especialmente musculado. Mas tinha lata. Tanta, que dava para fazer uma reprodução da Enterprise à escala de 1/10. Visto a minha t-shirt rosa bebé, dizia ele, que as mulheres gostam sempre do toque metro, e rosa bebé, atenção, nada de lavanda, ou fucsia, ou rosa choque (um homem que conhece e distingue todos estes tons de rosa é um espectáculo), e depois lanço a rede. A que cair, caiu. E pronto damos umas voltinhas e amigos como dantes.
Ao longo da noite, cantaria coplas sobre os olhos das meninas. Dançaria sevilhanas, falaria sobre técnicas de sedução à man, arrancaria beijinhos e abraços até da mais renitente e sarcástica feminista, como eu.
Porque é que os homens não percebem que não precisam de jogar jogos mentais, quando a honestidade é muito mais divertida e gera tantos, se não mais frutos e menos complicações que o isco personalizado? A EL MATADOR ninguém leva a mal. Não o levam a sério, mas também não quer ser levado. Queria apenas uns bocados divertidos. E não há rigorosamente nada errado nisso.

sexta-feira, julho 18, 2008

quarta-feira, julho 16, 2008

O outro lado da coisa




A canção tem a letra, apreciem, espero eu, como eu apreciei, a fina ironia da Jewel, é delicioso.

terça-feira, julho 15, 2008

Overachiever


Com 33 anos, é embaixadora da ONU, tem um Oscar e três filhos de um dos homens mais bonitos da terra, com a agravante de ficar linda grávida. E vocês, o que fizeram com os vossos 33 anos?

segunda-feira, julho 14, 2008

A cristianização dos bárbaros e as olimpíadas da cultura aceitável

A rapariga estava desolada, de monco caído em cima do ice-tea caríssimo da casa de chá chiquéeeeeeeeeerrima: tinha adormecido a ver um grande clássico a preto e branco do cinema, o que aos olhos do namorado era um crime gravíssimo, uma admissão não só de ignorância como ainda por cima de insensibilidade cultural. Sim, porque não saber pode ser corrigido, o não querer saber não.
Tendo eu própria namorado aqui à uns tempos com um snob musical, o meu coração foi de encontro às suas tribulações : não há nada como nosso mais que tudo dizer em voz magoada e incrédula :"O quê, tu não conheces a Nico/Diamanda Galás/Death in June/Music for airports do Brian Eno /John Cale?" para uma pessoa se sentir do piorzinho, uma desgraçada acabada de sair das berças, bimba e desajeitada, com mais sotaque que a Mirita Casimiro a cantar "Adeus ó serra".
A minha colega continuava com a sua triste história. O namorado achava que ela devia ler os clássicos para se cultivar. Devia ver mais RTP2 (excepto à hora da Anatomia de Grey ou Ossos), ouvir mais ópera, ir a mais exposições e, no geral aperfeiçoar-se para chegar aos mínimos culturais exigidos pelas Pessoas Que Sabem. Como ela sabe a minha paixão por livros, perguntou-me por onde começar: se pelos clássicos, para construir uma visão histórica até chegar à literatura contemporânea, se pelos contemporâneos nobelizados para ficar com uma ideia do melhorzinho. Claro que depois desta tirada só me ofereceu dizer uma coisa e uma apenas: vê e lê o que te der na bolha. O que te der prazer. Porque se uma pessoa anda a cultivar-se como quem treina para os olímpicos tem todo o trabalho e nenhum do prazer. E a cultura não faz sentido se não for prazer.
Esta tirada pôs-me a pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, que é uma questão muito comum, todas nós tivemos namorados que nos quiseram melhorar para nosso bem, depois, que é uma questão complexa, porque não se trata apenas da cristianização dos povos bárbaros para a salvação da sua alma e glória do senhor ámen, mas sim daquilo que é cultura e daquilo que uma pessoa precisa de saber em termos de cultura para ser considerada não sei bem se culta, se ao corrente, se virtuosa se quê. Vamos por partes.
Essa abordagem de começarmos um namoro e sermos imediatamente aclimatados aos gostos do outro é uma abordagem clássica, no sentido romano: primeiro a conquista, depois a romanização e a erecção (pun intended) de um fórum civilizado. Isto acontece em todas as relações, e é uma questão de, como em tudo, atingir um ponto de equilíbrio. Bater o pé para levar a nossa adiante sempre não adianta nada, deixar-se ir parvamente a todo o lado que o outro ache que sim também não. Tem de haver negociação e compromisso de parte a parte, ou então nunca mais poderemos ver e apreciar um episódio dos Ossos, no caso da minha colega, ou ouvir um CD dos three Doors Down no meu caso. E não se deixem ir no romantismo de fazer isso por eles e amar tudo o que ele ama: no fim de contas estamos incrivelmente frustradas e a coisa não se aguenta, nem com a melhor vontadinha do mundo.
Quanto à alta cultura e aquilo que As Pessoas Que Sabem acham que eu, ou qualquer outra pessoa deve saber, é, simplesmente treta. Uma pessoa tem de poder relaxar. Não deve obrigar-se a conhecer só por conhecer. Porque é que uma pessoa se deve obrigar a ler a Guerra e Paz, ou a ver o Couraçado de Potempkine, ou a estar tu cá tu lá com os novos percursos das artes visuais/dança contemporânea/cinema iraniano se não o quiser? Claro que o saber não ocupa lugar e não perdemos nada em ter um espírito curioso. Mas daí a fazer uma espécie de lista daquilo que é aceitável é, sinceramente, um grande abuso. A ideia é cada um construir o seu percurso intelectual de acordo com os seus interesses. E se os meus interesses passam tanto pela Madame Butterfly como pelos nus masculinos do Roma, ninguém tem a autoridade para me dar a palmadinha nas costas pela primeira ou o olhar reprovador pela segunda. E mainada.

quinta-feira, julho 10, 2008

L'amour fou

Só os muito novos, ou os muito velhos conseguem amar com total e completo desprendimento, sem limites, até mesmo os da sanidade. Os primeiros, porque não têm história, e tudo é novo e possível, os segundos porque já não a terão, não têm nada a perder. Entre uma coisa e outra somos cicatrizes e bagagens, responsabilidades e horários. Ninguém ama loucamente com um relatório a apresentar, ou com prestações para pagar que não param de aumentar. Não sei se a idade nos rouba dessa espécie de inocência em que amar não tem limites nenhuns, mas talvez a lucidez nos impeça de tantas coisas que antes fazíamos, de tantas coisas ridículas e impulsivas e maravilhosas e devastadoras. Na idade adulta ama-se com muito, muito cuidado.
Enquanto adolescente era indefectivelmente romântica (agora ainda sou mas refreio impiedosamente esses ímpetos), tendo como referência dois ou três livros e meia dúzia de filmes. O Le Diable Au Corps, de Raymond Radiguet, o Fio da Navalha, de Sommerset Maugham, O Amor Nos Tempos De Cólera, de Garcia Marquez, nos filmes o mais importante o Jules et Jim, ou o L'Atalante. Os amores de novos, sem referências, de velhos, sem limites. Agora que estou no meio, entre uns e outros, não é por acaso que tenho outras coisas como referência: o amor já não é, como diz Camões, como soía.
De A. S. Byatt, um dos meus livros favoritos de sempre, Possession mostra como amamos agora, breve e magoadamente, nenhuma das nossas acções deixa de ter repercussões, nenhuma é inocente, nem inócua.
Não sei se é nostalgia se alívio de não poder, de não conseguir mais entregar-me assim ao l'amour fou. Um pouco de ambas, suponho. Acho que a pena é a mesma de não ser já criança, o alívio o mesmo de não estar no inferno na terra que são os anos de liceu. E a nostalgia insuportável que me invade uma vez por outra, bom, não tem remédio. Deixemos o amor ser como é, e estar louco e sem limites nos sítios onde é belo e tem sentido, como os filmes que amamos, os livros que amamos. Para nós, bem ou mal, está o quinhão da realidade, da racionalidade quotidiana.