segunda-feira, julho 14, 2008

A cristianização dos bárbaros e as olimpíadas da cultura aceitável

A rapariga estava desolada, de monco caído em cima do ice-tea caríssimo da casa de chá chiquéeeeeeeeeerrima: tinha adormecido a ver um grande clássico a preto e branco do cinema, o que aos olhos do namorado era um crime gravíssimo, uma admissão não só de ignorância como ainda por cima de insensibilidade cultural. Sim, porque não saber pode ser corrigido, o não querer saber não.
Tendo eu própria namorado aqui à uns tempos com um snob musical, o meu coração foi de encontro às suas tribulações : não há nada como nosso mais que tudo dizer em voz magoada e incrédula :"O quê, tu não conheces a Nico/Diamanda Galás/Death in June/Music for airports do Brian Eno /John Cale?" para uma pessoa se sentir do piorzinho, uma desgraçada acabada de sair das berças, bimba e desajeitada, com mais sotaque que a Mirita Casimiro a cantar "Adeus ó serra".
A minha colega continuava com a sua triste história. O namorado achava que ela devia ler os clássicos para se cultivar. Devia ver mais RTP2 (excepto à hora da Anatomia de Grey ou Ossos), ouvir mais ópera, ir a mais exposições e, no geral aperfeiçoar-se para chegar aos mínimos culturais exigidos pelas Pessoas Que Sabem. Como ela sabe a minha paixão por livros, perguntou-me por onde começar: se pelos clássicos, para construir uma visão histórica até chegar à literatura contemporânea, se pelos contemporâneos nobelizados para ficar com uma ideia do melhorzinho. Claro que depois desta tirada só me ofereceu dizer uma coisa e uma apenas: vê e lê o que te der na bolha. O que te der prazer. Porque se uma pessoa anda a cultivar-se como quem treina para os olímpicos tem todo o trabalho e nenhum do prazer. E a cultura não faz sentido se não for prazer.
Esta tirada pôs-me a pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, que é uma questão muito comum, todas nós tivemos namorados que nos quiseram melhorar para nosso bem, depois, que é uma questão complexa, porque não se trata apenas da cristianização dos povos bárbaros para a salvação da sua alma e glória do senhor ámen, mas sim daquilo que é cultura e daquilo que uma pessoa precisa de saber em termos de cultura para ser considerada não sei bem se culta, se ao corrente, se virtuosa se quê. Vamos por partes.
Essa abordagem de começarmos um namoro e sermos imediatamente aclimatados aos gostos do outro é uma abordagem clássica, no sentido romano: primeiro a conquista, depois a romanização e a erecção (pun intended) de um fórum civilizado. Isto acontece em todas as relações, e é uma questão de, como em tudo, atingir um ponto de equilíbrio. Bater o pé para levar a nossa adiante sempre não adianta nada, deixar-se ir parvamente a todo o lado que o outro ache que sim também não. Tem de haver negociação e compromisso de parte a parte, ou então nunca mais poderemos ver e apreciar um episódio dos Ossos, no caso da minha colega, ou ouvir um CD dos three Doors Down no meu caso. E não se deixem ir no romantismo de fazer isso por eles e amar tudo o que ele ama: no fim de contas estamos incrivelmente frustradas e a coisa não se aguenta, nem com a melhor vontadinha do mundo.
Quanto à alta cultura e aquilo que As Pessoas Que Sabem acham que eu, ou qualquer outra pessoa deve saber, é, simplesmente treta. Uma pessoa tem de poder relaxar. Não deve obrigar-se a conhecer só por conhecer. Porque é que uma pessoa se deve obrigar a ler a Guerra e Paz, ou a ver o Couraçado de Potempkine, ou a estar tu cá tu lá com os novos percursos das artes visuais/dança contemporânea/cinema iraniano se não o quiser? Claro que o saber não ocupa lugar e não perdemos nada em ter um espírito curioso. Mas daí a fazer uma espécie de lista daquilo que é aceitável é, sinceramente, um grande abuso. A ideia é cada um construir o seu percurso intelectual de acordo com os seus interesses. E se os meus interesses passam tanto pela Madame Butterfly como pelos nus masculinos do Roma, ninguém tem a autoridade para me dar a palmadinha nas costas pela primeira ou o olhar reprovador pela segunda. E mainada.

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