quinta-feira, setembro 18, 2008

A estatística silenciosa




Após aquela obscenidade da morte em directo no BES, os noticiários estão cheios de crimes violentos: assaltos aqui, carjacking ali, tiros, sangue e facadas. Os políticos apanham-lhe a onda e começam a clamar por tudo e mais alguma coisa, que emigrantes para cá, penas pesadas para lá, controlo de armas por além. Não estão errados, mas são omissos. E, de acordo com o credo católico, que estes pilares de direita dizem ser, a omissão é igualmente um pecado. Sabem qual é a criminalidade que mais mortos, de longe, causou este ano? A violência doméstica. Claro que isso não dá votos, ou tantos votos como pegar na bandeira da criminalidade. Jogar com os medos das pessoas resulta sempre num ou outro voto, jogar com consciências pesadas não.
A Espanha, nossa vizinha, há muito tempo já que luta com este problema. Estatisticamente, o número de mulheres assassinadas por violência doméstica é superior ao nosso, mas também a população é mais numerosa. Feitas as devidas proporcionalidades, acabamos por ter números muito semelhantes. A questão é que, onde os nossos vizinhos agem, com campanhas de consciencialização constantes e programas específicos, nós preferimos calar. Resulta politicamente mais proveitoso bater noutros ceguinhos, como os professores, essa súcia de malfeitores, os funcionários públicos, esses facínoras, ou as pessoas que vêm de bairros problemáticos, que por feliz coincidência são de nacionalidade ou etnia diferente da nossa: a culpa tem de ser de alguém em específico, não da nossa cultura, a mais perfeitinha de todas, ou, Deus não permita, nós mesmos.
Não dá para traçar uma demografia específica da violência doméstica. Como a doença, ou a morte, ataca todos os estratos sociais, todos os escalões demográficos, todas as regiões. A violência doméstica não afecta apenas gente de certa idade, ou pobre e ignorante. Dois casos que conheci de perto reportavam-se a mulheres de classe média-alta, não podendo ser atribuída qualquer culpa à falta de cultura, à ignorância ou à pobreza. Uma destas mulheres era uma aluna brilhante na Universidade, apanhava do namorado que lhe controlava todos os passos. A segunda era esposa de um médico e financeiramente independente por mérito próprio. As ausências dela eram justificadas por um misterioso problema de saúde, cujas crises a iam mantendo em casa às semanas de cada vez. Ninguém desconfiava, ninguém fazia nada, era um problema invisível.
Se a sociedade evoluiu em muitas coisas, outras há em que o não fez, ou não tanto quanto deveria. Na nossa cultura é um problema do foro privado e muito poucas vezes alguém de fora diz seja o que for, deixando para a vítima a coragem de denunciar, ou o ónus de calar até onde lhe for possível. Muitas vezes este silêncio paga-se com a vida, com o abuso igualmente dos filhos da relação, e com um ciclo de violência sem fim: crianças abusadas são muitas vezes adultos abusadores. Nisto, como em tudo, as crianças aprendem pelo exemplo. As gerações anteriores de mulheres esperavam, mais ou menos, a violência. Era comum, aceitado socialmente, quase a norma. A nossa geração, e as outras que nos seguem, calam-se igualmente.
Não consigo perceber como se pode ficar numa relação assim. Dizem-me que por amor, mas nenhuma forma de amor que eu conceba aceita ou consegue justificar violência sobre nós ou as crianças. Mas suspeito que a teia dos abusadores seja tão paralisante como a das seitas religiosas, e muito semelhante na actuação. Depois daquele sentimento de carinho e protecção, às vezes um pouco excessivo, vem o corte de relações com o exterior, amigos e parentes, e a mulher fica presa, isolada dentro dessa relação infernal. Não têm (ou acham que não têm) a quem recorrer, quem as ouça ou ofereça soluções. E a verdade é que, apesar de leis cheias de boas intenções, este país não tem estruturas suficientes para dar apoio nestes casos. Poucas vagas em lares de acolhimento, poucas capacidades para dar formação e independência económica às mulheres para poderem seguir em frente, viverem sem o agressor.
É minha convicção que a violência, seja de que tipo for, se ataca melhor pela prevenção que pela punição. O que é é que a prevenção não faz vista, não dá votos nem palmadinhas nas costas dos cidadãos preocupados. E de todas as estatísticas possíveis, há as que dão jeito, e se mostram, e as que se calam. Como esta.

1 comentário:

vermelho disse...

Muito bem! Nunca é demais falar neste assunto tão encapotado.
Beijinhos.