Aqui há uns anos deram-me o Tom Waits. Deram-mo dado, para mim, e fiquem, aliás, sabendo que se desfrutam dele é devido à minha magnanimidade e boa vontade. Sendo que não sou uma pessoa especialmente materialista, foi o presente perfeito, sendo a ponte entre os meus gostos e os dele. É bom termos pontes nestas coisas.
Pois esse mesmo falecido, para além de me dar o Tom Waits, para mim, queria fugir comigo. Iríamos para Paris e viveríamos numa mansarda, eu dos meus livros, ele da arte dele e seriamos ridiculamente felizes e tudo e tudo e tudo. É óbvio que lhe disse que não. Não era prático, não era seguro, era um disparate. Acho que as coisas começaram a morrer um bocadinho ali, mais ou menos a partir da minha sexagésima quinta recusa em fugir com ele. Já a coisa estava nos últimos estertores quando ele me acusava, repetidamente, de não o amar o suficiente, de me amar mais que eu a ele. Eu, convencida que tinha ali à minha frente o meu sete-sóis dito e escrito estava indignada, claro que amava, podia lá ser de outra maneira? Aparentemente podia, mas a ficha só me caiu anos depois, quando me encontrei na mesma posição em que ele se encontrava.
Como nos fizemos espectacularmente infelizes um ao outro, só depois de me ver livre de todas as feridas, fechar todos os fantasmas no respectivo sótão é que percebi que o homem estava coberto de razão. O que, como devem ter sentido, provocou uma alteração do eixo do universo e um sismo de proporções épicas. Mas a razão, essa ninguém lha tirava. Ou se ama demais (e cito-o), ou não é o suficiente.
Eu que amava muito, mas não demais, não percebia o ponto de vista dele. Não queria fugir mas ficar, construir uma coisa sólida e lógica e racional, como se o amor se compadecesse dessas coisas. Para se construir um amor sólido, uma coisa que valha a pena não basta a razão, nunca. É precisa a loucura de deixar tudo e todos para trás, de pôr tudo de lado para fazer a coisa funcionar. Nada mais importa.
Na altura, não queria, nem estava pronta para abdicar de nada, queria tudo. Queria a família, as amigas (e amigOs, ponto de constante discórdia), a rotina e o trabalho e a ele. Evidentemente que não pode ser. Amar é um exercício, como diz o Rilke, de libertação. Do outro, porque preso ninguém ama bem, mas também de nós, de despojamento e de abdicação. Para amar temos de estar dispostos a perder, e a perder não só o que podemos e queremos, mas sobretudo o que não queremos nem podemos. Azar foi esta sabedoria só me ter chegado anos depois, quando já não me dava proveito nenhum. Mas pronto aqui fica. Se lhes pedirem para fugir, pensem nisso. Até que ponto amam?
11 comentários:
Não vale a pena fugir só por desporto, ou exercício de estilo. Nesse caso só sobra ressentimento e dor. Mesmo de forma inconsciente, fizeste o melhor.
Sempre tua
Su
O acerto de não ter fugido nunca esteve em debate. Teriamos sido tão espectacularmente infelizes cá como lá, se não um bocadinho mais ainda, porque sabemos ambas o irritada que falta de banhos quentes e refeições regulares me deixa. O que está em causa é não ter percebido mais cedo que nunca o amei o suficiente, que me teria poupado uma data de sofrimento escusadinho.
Ainda hoje fugia... quanto mais. A vida são dois dias, e o carnaval já passou. Mas reconheço, não é para toda a gente.
Lembro-me disso e ainda bem que não tomaste essa decisão. Tal como tu, abdicar das amigas e da familia era demais. Tu sabes que já fiz maluqueiras.
Da tua mana do coração, vai a frota do costume
É uma questão de pontos de vista, Niagara: não é absolutamente essencial fugir para se ser feliz. Essencial é amar o suficiente para estar disposta a fazê-lo: quando não se ama demais não é o suficiente.
Cris, manocas, outra , sempre ;)
Tretas e tretas neste post.
Tom Waits está bem casado e até deixou de beber, diz a mulher dele e quem o conhece.
Lamentável, mas (supostamente) verdade.
Terei, acidentalmente, pisado algum calo, anónimo(a)? Eu quero lá saber se o Tom Waits está casado e não bebe! Referia-me, com uma certa liberdade poética à música e não ao senhor. Se não estou em erro isso é uma metonímia. Já viu, metáforas e metonímias numa só frase? Isto é só capacidade literária.
Nem o homem Tom Waits nem o falecido de duvidosa memória me pertencem ou quero que pertençam. Aliás, se leu o texto com atenção verificará que nem nessa altura queria que pertencesse porque não gostava dele o suficiente. Esse era o ponto de TODO o artigo. Aliás, posso até acrescentar uma coisa que não disse no post: que não gostava o suficiente porque estava apaixonada por outro. Não me tinha era ainda caído a ficha, sou uma rapariga de compreensão lenta.
De modos que lhe sugiro que regresse para a toca de onde saíu, vá roer o seu queijo na companhia de quem mais queira, se não quer incomodar-se, não apareça.Abstenha-se de vir comentar aquilo que não sabe, ou não lhe compete. Tenho a ideia de andar a dizer(lhe) sempre a mesma coisa parece que não sou a única de compreensão lenta.
Agora lamentável, lamentável é o anonimato. E mainada.
Olha que tu vai-me lembrando de não fazer nada que te descaia. Deus me livre de ser recipiente de uma rabecada desta natureza. Se de fora me rio do desafortunado infeliz que a recebeu, até tremo de pensar que o mesmo me podia acontecer.
Anónimo, você deve ter uma sequencia de costelas de masoquista... espero que não demore muito tempo a lamber as feridas, porque mesmo que a Passionária não seja grande fã, eu cá acho que isto é puro pão e circo.
Sempre tua, sis
Su
Ai que divertido, nesta altura que é só testes e trabalhos para corrigir, só isto para me fazer rir! Sóo quem não sabe o que passámos comm os antigos amors é que pode escrever estas coisas...Ai, até paarece que estou com os copos, eu um arespeitável mãe de família...Bem, querida, tu entenedes-me e isso é quanto basta...Bjos,N
Bem, realmente, quantos erros, mesmo que quisesse não era capaz. Até ficou engraçado! A Mariana perguntou-me se estava a falar comigo própria...Se calhar! Nô!
Falar connosco próprias é sempre um exercício inebriante, nô ;). Beijocas à Mariana e restantes rebentos...
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