sexta-feira, agosto 08, 2008

A Guerra



Um homem morreu ontem. Que o tenha feito á conveniência dos noticiários, em pleno directo, pode-se considerar apenas um pequeno acaso feliz das forças cósmicas, a apimentar audiências por demais insossas de verão. Hoje de manhã vieram as palmadinhas nas costas e as congratulações mútuas de um trabalho bem feito, toda a gente devidamente aconchegada na parte da razão que lhe cabe excepto aquele que acabou com balas estendido numa poça de sangue, e cujo saco de cadáveres haveria de decorar as notícias da hora de almoço, ou o outro, atingido na cervical com o prognóstico aceitável de muito grave. Menos que isso teria sido inaceitável ao guião do filme. As GOE em posição, e o INEM, e a PSP e todos os outros, os jornalistas e os mirones e os telespectadores num rush de adrenalina e de repente tudo está terminado, o fim orgiástico de duas balas de sniper a dar um fim aceitável à expectativa .
Um homem morreu ontem. Saberia ontem de manhã, ao vestir-se, ao preparar-se para roubar, dinheiro ou vidas, que terminaria umas horas depois, a areia da ampulheta a escoar-se cada vez mais rápido até não haver mais, todas as acções, legais e ilegais da sua vida curta a conduzir ao chão de mármore luxuoso daquele banco, à poluição da arma do sniper? Saberiam os seus pais, quando o geraram e lhe deram vida que seria um caminho inexorável para a mira dos fotógrafos e as câmaras da tv, só com distorção misericordiosa para os reféns?
Ter um filho é um processo lento, pesado, gerá-lo e alimentá-lo e esperá-lo e depois tantos meses, tantos anos de cuidados e atenções para garantir a sobrevivência, o crescimento, a saúde. Acabar com ele demora segundos. Vinte e sete ou vinte e oito até tudo terminar, hoje.
Hoje desfraldaram bandeiras e acenderam tochas e acenou-se ao público. Noutro sítio foram os tanques de guerra, ou os cintos explosivos, ou tantos outros milhares de formas de levar a morte a tanta gente, de levar o luto, apenas de forma mais privada que a de morrer do homem que morreu ontem. Partilhámos todos a intimidade de o ver morrer: a maior parte das vezes nem com a família o partilhamos, os doentes empurrados para lares, camas do hospital, longe das vidas dos vivos, longe das rotinas. E desta intimidade nem sequer um nome, ou uma razão, ou piedade. Em muitos sítios do mundo à pais a chorar a perda de filhos. Espero que o haja também para o homem que morreu ontem. Ao menos isso.

1 comentário:

Anónimo disse...

Passionária

O sistema aceita, permite e até estimula que se vá ao banco levantar dinheiro e de preferência que seja tão "in" que ainda não se chegou ao balcão e já alguèm lá de dentro, pergunta com etiqueta quanto é que é preciso para gastar naquele dia.
Os outros, que fazem andar o sistema, se precisarem de alimentos, abrigo, medicamentos, acesso à cultura e à ciência entre outras coisas e não tiverem dinheiro, resta-lhes, estupidamente pegarem em armas estúpidas e armados estupidamente de muito desespero, fazerem desesperadamente um jogo de roleta russa.

Até sempre passionária...

daquele que muito te estima sem te conhecer pessoalmente

Francisco de Assis - Um escravo no tempo da computação quântica.