segunda-feira, julho 28, 2008

O texto que se escreve a si mesmo


A história é tão boa que não resisto a contar. E não, não são apenas delírios de tia babada, apreciem a sabedoria da nova geração da minha família.
Vejo a minha sobrinha uma vez por mês, mais ou menos, pois vivemos longe. Há dois meses atrás, a miúda, que ainda não tem quatro anos, tinha uma novidade: um namorado chamado Xavier. Apesar de ser um bocado deprimente ter uma sobrinha com uma vida social mais activa que a tia, perguntei, devidamente, pelo Xavier na visita seguinte. Resposta da criança: agora o namorado não era o Xavier, mas o Hugo. Mais uma vez perguntei porquê. A S., já com um ar de sofrimento de ter de explicar tudo à tia um bocado densa explicou claramente:
-Sabes tia, às vezes o Xavier magoava-me e o Hugo é meiguinho.
Achei a explicação eminentemente sábia e mais não disse.
Desta vez, tia preocupada, perguntei de novo pelo "sobrinho" Hugo. A miúda olhou para mim com o ar mais surpreso do mundo:
- Oh, tia, já não namoro com o Hugo. Vou para a outra escolinha e lá há muitos meninos novos para namorar!
Ora toma. Se ao menos nós adultas tivéssemos o bom senso e sentido prático da miúda! Reflictam, como eu o fiz, que este texto de conselhos é dos que se escreve a si mesmo.

terça-feira, julho 22, 2008

Da pesca por arrastão


Homens há que encaram as mulheres como peixe. Preparam cuidadosamente o isco, sentam-se calmamente e esperam que o peixe morda. Há outros que não, nem por isso. Em vez do trabalho que dá apanharem um de cada vez, de escolher o isco mais apetecido para aquele peixe em particular, lançam a rede e o que vier por arrasto, é lucro. E se os primeiros me enchem e desconfiança, pois um homem paciente e calculista é do piorzinho, os segundos não deixam de me divertir em grande medida. Não porque são pouco exigentes, mas sim porque são descarados e honestos acerca das suas expectativas numa mulher. E não há nada mais refrescante que um homem absolutamente honesto, mesmo que essa honestidade o leve a confessar ser um engatatão em série.
Trazia uma T-shirt que o proclamava EL MATADOR, e uma personalidade que combinava com a t-shirt. Como quem não quer a coisa, estou convencida que conseguiria vender aquecedores aos alentejanos nesta altura do ano, e olhem que os 40 graus estão sempre à vista. Em menos de meia hora vendeu um livro dele. A um outro que por acaso até é dono de uma livraria, por isso estão a ver a lata. O segredo, dizia ele, é ser-se sempre cortês e bem educado com toda a gente meninas) sobretudo. Compensa sempre, continuava, porque se não caírem à primeira, caem à segunda ou à terceira. E pelos vistos caem mesmo.
Não era especialmente bonito, ou especialmente alto, ou especialmente musculado. Mas tinha lata. Tanta, que dava para fazer uma reprodução da Enterprise à escala de 1/10. Visto a minha t-shirt rosa bebé, dizia ele, que as mulheres gostam sempre do toque metro, e rosa bebé, atenção, nada de lavanda, ou fucsia, ou rosa choque (um homem que conhece e distingue todos estes tons de rosa é um espectáculo), e depois lanço a rede. A que cair, caiu. E pronto damos umas voltinhas e amigos como dantes.
Ao longo da noite, cantaria coplas sobre os olhos das meninas. Dançaria sevilhanas, falaria sobre técnicas de sedução à man, arrancaria beijinhos e abraços até da mais renitente e sarcástica feminista, como eu.
Porque é que os homens não percebem que não precisam de jogar jogos mentais, quando a honestidade é muito mais divertida e gera tantos, se não mais frutos e menos complicações que o isco personalizado? A EL MATADOR ninguém leva a mal. Não o levam a sério, mas também não quer ser levado. Queria apenas uns bocados divertidos. E não há rigorosamente nada errado nisso.

sexta-feira, julho 18, 2008

quarta-feira, julho 16, 2008

O outro lado da coisa




A canção tem a letra, apreciem, espero eu, como eu apreciei, a fina ironia da Jewel, é delicioso.

terça-feira, julho 15, 2008

Overachiever


Com 33 anos, é embaixadora da ONU, tem um Oscar e três filhos de um dos homens mais bonitos da terra, com a agravante de ficar linda grávida. E vocês, o que fizeram com os vossos 33 anos?

segunda-feira, julho 14, 2008

A cristianização dos bárbaros e as olimpíadas da cultura aceitável

A rapariga estava desolada, de monco caído em cima do ice-tea caríssimo da casa de chá chiquéeeeeeeeeerrima: tinha adormecido a ver um grande clássico a preto e branco do cinema, o que aos olhos do namorado era um crime gravíssimo, uma admissão não só de ignorância como ainda por cima de insensibilidade cultural. Sim, porque não saber pode ser corrigido, o não querer saber não.
Tendo eu própria namorado aqui à uns tempos com um snob musical, o meu coração foi de encontro às suas tribulações : não há nada como nosso mais que tudo dizer em voz magoada e incrédula :"O quê, tu não conheces a Nico/Diamanda Galás/Death in June/Music for airports do Brian Eno /John Cale?" para uma pessoa se sentir do piorzinho, uma desgraçada acabada de sair das berças, bimba e desajeitada, com mais sotaque que a Mirita Casimiro a cantar "Adeus ó serra".
A minha colega continuava com a sua triste história. O namorado achava que ela devia ler os clássicos para se cultivar. Devia ver mais RTP2 (excepto à hora da Anatomia de Grey ou Ossos), ouvir mais ópera, ir a mais exposições e, no geral aperfeiçoar-se para chegar aos mínimos culturais exigidos pelas Pessoas Que Sabem. Como ela sabe a minha paixão por livros, perguntou-me por onde começar: se pelos clássicos, para construir uma visão histórica até chegar à literatura contemporânea, se pelos contemporâneos nobelizados para ficar com uma ideia do melhorzinho. Claro que depois desta tirada só me ofereceu dizer uma coisa e uma apenas: vê e lê o que te der na bolha. O que te der prazer. Porque se uma pessoa anda a cultivar-se como quem treina para os olímpicos tem todo o trabalho e nenhum do prazer. E a cultura não faz sentido se não for prazer.
Esta tirada pôs-me a pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, que é uma questão muito comum, todas nós tivemos namorados que nos quiseram melhorar para nosso bem, depois, que é uma questão complexa, porque não se trata apenas da cristianização dos povos bárbaros para a salvação da sua alma e glória do senhor ámen, mas sim daquilo que é cultura e daquilo que uma pessoa precisa de saber em termos de cultura para ser considerada não sei bem se culta, se ao corrente, se virtuosa se quê. Vamos por partes.
Essa abordagem de começarmos um namoro e sermos imediatamente aclimatados aos gostos do outro é uma abordagem clássica, no sentido romano: primeiro a conquista, depois a romanização e a erecção (pun intended) de um fórum civilizado. Isto acontece em todas as relações, e é uma questão de, como em tudo, atingir um ponto de equilíbrio. Bater o pé para levar a nossa adiante sempre não adianta nada, deixar-se ir parvamente a todo o lado que o outro ache que sim também não. Tem de haver negociação e compromisso de parte a parte, ou então nunca mais poderemos ver e apreciar um episódio dos Ossos, no caso da minha colega, ou ouvir um CD dos three Doors Down no meu caso. E não se deixem ir no romantismo de fazer isso por eles e amar tudo o que ele ama: no fim de contas estamos incrivelmente frustradas e a coisa não se aguenta, nem com a melhor vontadinha do mundo.
Quanto à alta cultura e aquilo que As Pessoas Que Sabem acham que eu, ou qualquer outra pessoa deve saber, é, simplesmente treta. Uma pessoa tem de poder relaxar. Não deve obrigar-se a conhecer só por conhecer. Porque é que uma pessoa se deve obrigar a ler a Guerra e Paz, ou a ver o Couraçado de Potempkine, ou a estar tu cá tu lá com os novos percursos das artes visuais/dança contemporânea/cinema iraniano se não o quiser? Claro que o saber não ocupa lugar e não perdemos nada em ter um espírito curioso. Mas daí a fazer uma espécie de lista daquilo que é aceitável é, sinceramente, um grande abuso. A ideia é cada um construir o seu percurso intelectual de acordo com os seus interesses. E se os meus interesses passam tanto pela Madame Butterfly como pelos nus masculinos do Roma, ninguém tem a autoridade para me dar a palmadinha nas costas pela primeira ou o olhar reprovador pela segunda. E mainada.

quinta-feira, julho 10, 2008

L'amour fou

Só os muito novos, ou os muito velhos conseguem amar com total e completo desprendimento, sem limites, até mesmo os da sanidade. Os primeiros, porque não têm história, e tudo é novo e possível, os segundos porque já não a terão, não têm nada a perder. Entre uma coisa e outra somos cicatrizes e bagagens, responsabilidades e horários. Ninguém ama loucamente com um relatório a apresentar, ou com prestações para pagar que não param de aumentar. Não sei se a idade nos rouba dessa espécie de inocência em que amar não tem limites nenhuns, mas talvez a lucidez nos impeça de tantas coisas que antes fazíamos, de tantas coisas ridículas e impulsivas e maravilhosas e devastadoras. Na idade adulta ama-se com muito, muito cuidado.
Enquanto adolescente era indefectivelmente romântica (agora ainda sou mas refreio impiedosamente esses ímpetos), tendo como referência dois ou três livros e meia dúzia de filmes. O Le Diable Au Corps, de Raymond Radiguet, o Fio da Navalha, de Sommerset Maugham, O Amor Nos Tempos De Cólera, de Garcia Marquez, nos filmes o mais importante o Jules et Jim, ou o L'Atalante. Os amores de novos, sem referências, de velhos, sem limites. Agora que estou no meio, entre uns e outros, não é por acaso que tenho outras coisas como referência: o amor já não é, como diz Camões, como soía.
De A. S. Byatt, um dos meus livros favoritos de sempre, Possession mostra como amamos agora, breve e magoadamente, nenhuma das nossas acções deixa de ter repercussões, nenhuma é inocente, nem inócua.
Não sei se é nostalgia se alívio de não poder, de não conseguir mais entregar-me assim ao l'amour fou. Um pouco de ambas, suponho. Acho que a pena é a mesma de não ser já criança, o alívio o mesmo de não estar no inferno na terra que são os anos de liceu. E a nostalgia insuportável que me invade uma vez por outra, bom, não tem remédio. Deixemos o amor ser como é, e estar louco e sem limites nos sítios onde é belo e tem sentido, como os filmes que amamos, os livros que amamos. Para nós, bem ou mal, está o quinhão da realidade, da racionalidade quotidiana.

terça-feira, julho 08, 2008

Eye Candy


Kevin McKidd (Roma, Jouneyman... hummm...)

As raizes

Quando era pequena estas coisas não se questionavam, eram assim. Até hoje, um dos meus pratos preferidos é a roupa velha, com a batata e o bacalhau e as couves salteadas. Mas havia, sem dúvida, outras coisas: os peixinhos da horta, o empadão de frango, os rissóis . Toda a gente gozava imenso com a Filipa Vacondeus e o seu arroz de cordéis, mas na minha casa, como na de toda a gente que conhecia, a cozinha era anti-desperdício e vivia com o ritmo das estações. Não havia tomates ou pimentos de estufa, pêssegos em Março. As coisas aconteciam como tinhas de acontecer, no seu ciclo certo. No verão faziam-se doces e compotas, de ginjas ácidas ou pêssegos que tínhamos sempre demais, no outono era a vez do doce das pêras de inverno (que até hoje a minha amiga Su ama com positiva veneração), da marmelada. A minha avó A. tinha (e tem) uma mão mágica para o pão, as minhas tias quase todas fazem geleias e doces como ninguém. A cozinha era, sobretudo, um espaço de partilha. Cresci à volta dessa feminilidade de receitas partilhadas de Molotof e pudins de ovos, da altura certa de plantar flores, de fazer sabão artesanal, azul e branco. As minhas muitas tias e primas por afinidade sabiam fazer de tudo, pontos de camisolas para o inverno, bolinhos de arroz, bacalhau de todas as maneiras, como se tiravam nódoas do linho, como se curava um quebranto ou uma mágoa de amor.
Evidentemente que a vida mudou muito, e nós com ela. Naquela aldeia perdida e sonolenta era como se toda a gente vivesse num outro século, mas no resto do mundo o tempo continuava a girar vertiginosamente. Enquanto adolescente activista queria mais saber de Kurt Cobain, PETA e Amnistia Internacional que de pontos de croché. Esta sabedoria antiga era arcaica, ficou no fundo das memórias, como os episódios do Dartacão e do Verão Azul, os cromos do Toppo Giggio.
Foi precisa mais uma década e tal para me lembrar destas coisas.
Agora, numa época de crise, em que é preciso economizar, reverter o consumismo, evitar desperdícios, olho para trás e dou por mim a recorrer a muitos desses ensinamentos. Quem haveria de dizer que chegaria o dia em que acharia boa ideia cozinhar com o ritmo das estações, com o que é biológico, da época? Quem haveria de dizer o prazer que é cheirar o nosso próprio pão acabado de fazer? Ou oferecer às nossas amigas o doce de tomate caseiro da nossa infância? Não é irónico olhar em volta e ver que a forma de fazer as coisas antiga é melhor, mais saudável, ecológica, razoável que esta consumista, desenfreada que agora fazemos? Que é melhor para nós abraçarmos estas raízes em vez de as negar e esconder? Só a receita para o quebranto de amor não funciona. Oh, well, não se pode ter tudo.