domingo, junho 28, 2009

Cucos


Era uma vez um cuco que não gostava de couves...

É engraçado as coisas de que nos lembramos quando passamos tempo com as crianças. Às vezes há um sentimento de maravilha a propósito daquilo que sabemos, e que podemos ensinar a uma mente espantosamente fresca e aberta, sedenta de saber. Outras vezes parece-me que quem aprende, quem relembra sou eu, coisas que sabia quando era pequena e já não sei, que a vida e o cinismo me apagou da memória. Mas considerações filosóficas à parte, a ideia para este texto ocorreu-me quando estava a cantar com a minha sobrinha a lengalenga do cuco que não gostava de couves.
Estávamos as duas na cozinha sobre os nossos respectivos iogurtes e cantarolávamos a história do cuco e das couves (ocorrência que não teve testemunhas, e ainda bem, porque o amor pela música na nossa família só é superado pela nossa total, completa e absoluta falta de sentido de ritmo e das noções mais básicas sobre afinação, que começa mal e piora quanto mais velhas somos). A meio da lengalenga comecei a pensar que o raio do cuco era teimoso, aliás, que todos os envolvidos eram teimosos como o raio, prontos a servir a teimosia do cuco em não comer as couves (e quem o pode culpar? Quer dizer, não é beringela, que odeio, mas convenhamos que tampouco é gelado de chocolate). Só quando apareceu a morte é que a coisa funcionou e o cuco avançou em relação ao malfadado prato de couves. O pensamento marginalmente inteligente que me ocorreu (e pontualmente tenho um ou dois) é que o confronto com a nossa mortalidade nos leva a fazer coisas que, normalmente não faríamos.

E ele ia sempre a dizer couves não hei-de comer...

Há uns tempos atrás encontrei uma antiga colega, que trabalhou comigo no meu primeiro ano de trabalho (e já lá vão onze anos), que me deu a conhecer o casamento de outros dois colegas de trabalho. O que seria normal, a colega era bem uns dez anos mais velha que eu então e as pessoas vão-se casando, é a vida, não fosse o twist de o casal ser, se não um casal impossível, no mínimo dos mínimos, improvável.
É verdade que os caminhos do amor são imprevisíveis ( e considerem isto a minha quota de referência das Bronte obrigatória), mas mesmo assim este é um casal que não estava a ver formar. Não que se detestassem ou entrassem em conflito, mas simplesmente porque um não tinha muito a ver com o outro. Diferentes gerações, diferentes backgrounds culturais, diferentes bússolas morais, diferentes expectativas a respeito de vida, amor, tudo. Eram duas pessoas que, apesar de conseguirem manter uma relação amigável não tinham aquilo que se diz chama entre eles. E estou a explicar isto para chegar ao meu ponto, por isso perdoem-me se me alongo um bocadinho. Tinham tanto a ver um com o outro como o cuco e as couves da canção.


mandou-se chamar a morte ... o cuco já quis comer as couves.


Conhecendo ambos, e as suas naturezas diversas, não posso deixar de pensar nas razões que os juntaram. Se fosse a alminha optimista que era há uns aninhos diria que o amor aparece onde menos se espera e às vezes cresce em vez de nos atingir como um raio. Mas tendo esta alma cínica e abrasiva que vocês conhecem e amam (ou pelo menos já estão habituados) não consigo deixar de pensar se não seria o hábito e a solidão, o medo de envelhecer sozinhos que os juntou.

Confrontarmos-nos com a nossa própria mortalidade, com todos os relógios biológicos que temos dentro a apitar de hora a hora como um relógio de cuco não é nada fácil. À medida que envelhecemos e repensamos as nossas escolhas, pensamos se não haveria coisas que deveríamos fazer de outra maneira, se não deveríamos repensar a forma como levamos a vida. Ou como se diz algures na bíblia (desculpem, não me lembro onde), os moinhos de deus moem devagar, mas moem finíssimo. E uma das coisas que é moída pelos ditos moinhos (que não são mais que o tempo) são os nossos ideais.

As ideias sobre o nosso homem ideal mudam e descem, aceitando como companheiros de vida homens que antes não aceitaríamos, cedendo em pontos que antes nunca cederíamos. Isto deixa-me um bocado aborrecida (e todos sabemos a falta desgraçada que me fazem coisas que me azedem o feitio): teremos nós que abraçar e tornar nosso lema esse hit imorredoiro dos Rolling Stones, You can't always get what you want, mesmo se no nosso caso é mais never que always? Parece que sim.


Era uma vez um cuco que já gostava de couves...

Quando acabámos a canção ( o que, sem dúvida, encheu de júbilo os vizinhos do lado e de cima e os seus animais de estimação), tentei pôr de lado a reflexão filosófica deprimente (e olhem que lembrar-me de todos os passos da lengalenga e reflectir sobre a minha vida amorosa e a de terceiros é um facto de multitasking). E a minha sobrinha tratou de me mostrar que de facto, é mais sábia que eu exclamando, entre as últimas colheradas de iogurte:

-Ó tia, que cuco tão tonto, as couves até são boas!

E sabem, se calhar a cachopa tem razão. Mas continuam a não ser gelado de chocolate.




3 comentários:

Anónimo disse...

Hoje também até já gosto de couve...
Ângela

Anónimo disse...

Aos dezassete vale apena acreditar que "antes quebrar que torcer". Aos trinta a gente ja viveu mais e ja sabe que torcer, amolgar, ceder, e em geral nodoas negras sao parte imutavel da vida. Acontece. Coisas que antes nao tinha apelo mostram facetas de que ate gostamos. Nao sei se e bom ou mau. Nao penso nisso amanha.
Bem vista a metafora do cuco- o cuco do relogio do tempo a passar.

Beijinhos

Su

Patricia Almeida Alves disse...

Olha... e eu até gosto mais de couves do que de gelado de chocolate...loool