Quando era pequena estas coisas não se questionavam, eram assim. Até hoje, um dos meus pratos preferidos é a roupa velha, com a batata e o bacalhau e as couves salteadas. Mas havia, sem dúvida, outras coisas: os peixinhos da horta, o empadão de frango, os rissóis . Toda a gente gozava imenso com a Filipa Vacondeus e o seu arroz de cordéis, mas na minha casa, como na de toda a gente que conhecia, a cozinha era anti-desperdício e vivia com o ritmo das estações. Não havia tomates ou pimentos de estufa, pêssegos em Março. As coisas aconteciam como tinhas de acontecer, no seu ciclo certo. No verão faziam-se doces e compotas, de ginjas ácidas ou pêssegos que tínhamos sempre demais, no outono era a vez do doce das pêras de inverno (que até hoje a minha amiga Su ama com positiva veneração), da marmelada. A minha avó A. tinha (e tem) uma mão mágica para o pão, as minhas tias quase todas fazem geleias e doces como ninguém. A cozinha era, sobretudo, um espaço de partilha. Cresci à volta dessa feminilidade de receitas partilhadas de Molotof e pudins de ovos, da altura certa de plantar flores, de fazer sabão artesanal, azul e branco. As minhas muitas tias e primas por afinidade sabiam fazer de tudo, pontos de camisolas para o inverno, bolinhos de arroz, bacalhau de todas as maneiras, como se tiravam nódoas do linho, como se curava um quebranto ou uma mágoa de amor.
Evidentemente que a vida mudou muito, e nós com ela. Naquela aldeia perdida e sonolenta era como se toda a gente vivesse num outro século, mas no resto do mundo o tempo continuava a girar vertiginosamente. Enquanto adolescente activista queria mais saber de Kurt Cobain, PETA e Amnistia Internacional que de pontos de croché. Esta sabedoria antiga era arcaica, ficou no fundo das memórias, como os episódios do Dartacão e do Verão Azul, os cromos do Toppo Giggio.
Foi precisa mais uma década e tal para me lembrar destas coisas.
Evidentemente que a vida mudou muito, e nós com ela. Naquela aldeia perdida e sonolenta era como se toda a gente vivesse num outro século, mas no resto do mundo o tempo continuava a girar vertiginosamente. Enquanto adolescente activista queria mais saber de Kurt Cobain, PETA e Amnistia Internacional que de pontos de croché. Esta sabedoria antiga era arcaica, ficou no fundo das memórias, como os episódios do Dartacão e do Verão Azul, os cromos do Toppo Giggio.
Foi precisa mais uma década e tal para me lembrar destas coisas.
Agora, numa época de crise, em que é preciso economizar, reverter o consumismo, evitar desperdícios, olho para trás e dou por mim a recorrer a muitos desses ensinamentos. Quem haveria de dizer que chegaria o dia em que acharia boa ideia cozinhar com o ritmo das estações, com o que é biológico, da época? Quem haveria de dizer o prazer que é cheirar o nosso próprio pão acabado de fazer? Ou oferecer às nossas amigas o doce de tomate caseiro da nossa infância? Não é irónico olhar em volta e ver que a forma de fazer as coisas antiga é melhor, mais saudável, ecológica, razoável que esta consumista, desenfreada que agora fazemos? Que é melhor para nós abraçarmos estas raízes em vez de as negar e esconder? Só a receita para o quebranto de amor não funciona. Oh, well, não se pode ter tudo.
1 comentário:
Não senhora! tirar o quebranto funciona mesmo. Só é preciso paciência. Nao te esqueças do queijo que a tua tia T fazia e sim, o doce de pêra é... fora deste mundo.
sempre
Su
Enviar um comentário