quarta-feira, janeiro 03, 2007

Deusas, heroinas e avulsos



Há qualquer coisa de estranho e mágico neste livro que nos prende e nos fascina, não nos deixa poisá-lo por mais que queiramos. Não é um livro curto, nem fácil, nem cheio de glamour. E no entanto, qualquer coisa na história desta professora pobre, baixinha e não especialmente bonita nos fascina e comove até às lágrimas. Pelo menos comigo sempre o fez.
Este livro é uma espécie de bildungsroman, ou seja, começa na infância da protagonista e avança até à idade adulta, mostrando como se formou o seu carácter até ali. Qualquer mulher com pouca auto-confiança (ou seja, todas) conseguem identificar-se com aquela criança pouco amada, aquela mulher determinada, mas limitada pelas suas circunstâncias. E qualquer mulher com sangue nas veias se vai sentir irremediavelmente atraída pelo misterioso, ácido, irónico Mr. Rochester.
A Jane Eyre tem, minhas amigas, e isso torna o livro irresistível, um arquétipo masculino intemporal: o homem torturado.
Nenhuma mulher consegue resistir a um homem torturado, nenhuma. Ou só muito raramente. Tal como os filhos-da-mãe ou os indisponíveis, os homens torturados libertam uma vibração especial que ecoa dentro da perceptora vitoriana que há em nós (e eu gosto e valorizo muito a minha) e nos faz querer tratar deles e fazer com que tudo fique bem com eles. Ah, minhas amigas, é irresistivel, superior às nossas forças. Queremos curá-los do que quer que seja que na vida os tornou amargos e agrestes, difíceis, ignorando a verdade básica que muitos homens (e mulheres, claro) são simplesmente difíceis e mal-educados sem que nenhum trauma os tenha tornado assim, e que muitos seres torturados estão muito para lá daquilo que podemos fazer e precisam mais de um psiquiatra que de uma mulher que os redima (vão por mim, que sou diplomada no género).
Outra das coisas que torna este livro irresistível e muitissimo romântico, é a forma arrebatada com que ela é amada, aquela coisa feroz e sem limites que leva tudo à frente, até a lei e a moralidade. Que mulher não está farta de coisas assim-assim, do não sei muito bem se te amo, do vamos dar um tempo, do gostas mais de mim que eu de ti? Que mulher não sonha ser a primeira escolha no amor, a única possível, aquela que deixa marcas indeléveis (há entre nós, dirá Rochester, um fio invisivel que nos prende, não te afastes muito de mim ou arrancas-me o coração)?
A mulher insegura que há dentro de nós, a perceptora vitoriana mal-amada que há em nós, procura alguém como este Mr. Rochester, alguém firme e sólido como uma rocha, que saiba o que quer, ou melhor, que nos quer, e muito. É aquele nosso lado vulnerável que espera que nos salvem.
Uma das minhas melhores amigas diz que ela e eu (e os restantes membros do grupo) estão envenenadas pelas leituras de romances vitorianos na adolescência como este Jane Eyre, e que deviam trazer na capa a caveirinha que os venenos têm no frasco. Não deixa de ter razão. Não é lá muito liberado esperar que nos salvem, que nos amem arrebatadamente e nos valorizem. Não é moderno (é até um bocado embaraçoso) ter dentro de nós uma perceptora vitoriana a ansiar coisas, ou a querer salvar alguém. Mas as almas inseguras que há em nós anseiam e suspiram, mesmo se depois ingoram o suspiro com o cinismo próprio de quem vive no mundo real.
A ler, por vossa conta e risco.

2 comentários:

elisa disse...

Lembrei de uma música francesa de um grupo dos anos 80 que rezava assim "Ne la laisse pas tomber/ elle est si fragile/être une femme libérée/c'est pas si facile!"
Não é fácil. Mas sempre será melhor do que ser uma preceptora vitoriana:)!

Passionária disse...

Todas temos uma perceptora vitoriana dentro, Elisa, como temos uma deusa sexy, uma rainha de gelo, uma mãezinha, uma menina pequenina traquinas, uma santa... É essa a beleza dos seres humanos, serem múltiplos