Quando li o Rebecca pela primeira vez, pareceu-me um livro terrivelmente romântico. O herói nobre, a heroína sofredora e inocente, a ex malévola, todos os ingredientes ideais para um romance cor-de-rosa que alimentasse os sonhos de uma adolescente impressionável, que não sabia nada da vida. Em releituras posteriores fui mudando de ideias, agora já só o acho um romance terrivelmente terrível. A primeira leitura, feita por uma moralidade a preto-e-branco deu lugar a segundas e terceiras em que as personagens foram ganhando novas complexidades, mais profundidade, de modo que os arquétipos tão bem cortados das personagens deixaram de ter os contornos assim tão certos e imediatos. Porque havia o herói de ser automaticamente nobre, ou a heroína inocente, ou a ex malévola? Aliás, porque razão é eu todas as ex hão-de ser malévolas ? Que raio motiva as pessoas a tornar as ex as bruxas da maçã da Branca de Neve?
É notória a má fama que as ex têm na literatura, a começar logo pela maluquinha do sótão da Jane Eyre, mas a Rebecca serve como arquétipo porque aquilo que no passado era apenas oponente, uma espécie e barreira amorfa, ou uma criatura a lamentar, porque não do juízo todo, é aqui uma vilã completa sem qualquer tipo de qualidade redentora, manipulando o feliz casal até depois da morte. O que, considerando todas as coisas é bastante injusto, ou não?
Para Rebecca ser um livro escrito por uma mulher, poderia ter sido um pouco mais bondoso com as personagens femininas. A protagonista não tem nome até ganhar o do marido, não tem opiniões a não ser as dele, não existe sem ele. A governanta solteirona não poderia pingar mais estereótipos sobre solteironas se o quisesse, sendo amarga, ressentida, fanática. Só uma leitura mais perversa do inteligente Hitchcock lhe colocou um subtexto de homoerotismo e lhe deu um pouco de interesse. A irmã do protagonista é uma espécie de sopeira com título, mostrando aquilo que seria o arquétipo da mulher perfeita: calma, desarranjada, assexuada. Mas Rebecca, bem, Rebecca é a que é pior tratada, não havendo defeito a que não escape: pérfida, materialista, amoral, venal, emocionalmente impotente, cruel, de uma sexualidade refinada, aberta e, sobretudo, livre. É uma desgraça à espera de acontecer, caindo em cima do pobre Max deWinter como uma praga de gafanhotos, deixando só os ramos nus e frágeis da sua estrutura emocional. Ou pelo menos esta é a versão que nos contam, que nos querem fazer acreditar. A questão é o porquê, porquê este overkill? Haveria necessidade de um retrato a cores tão negras? Porquê?
Rebecca revela, e com muita clareza, as nossas neuroses face às ex, e por nossas não falo só das dos homens, das das mulheres também. Que os homens sejam neuróticos é natural, afinal não sabem lidar connosco. Reagem quase sempre como não devem, não conseguem acabar relações com a diplomacia ou a sensibilidade que deus deu a uma osga e sentem-se indignados quando despertam a nossa fúria. O que lhes dá a desculpa perfeita para pintar as ex como vilãs e sentirem-se melhores consigo mesmos. Vêm, é fácil de ver e perceber as suas motivações, é até lógico, previsível e mensurável. Já nós é uma questão completamente diferente. É que vocês vêm, não é só uma mulher de cada vez que os homens não entendem, eles entendem-nos ainda menos em grupo. Não percebem as complexidades das nossas interacções, das intrincadas teias de pesos e influências que estabelecemos.
A mulher média é insegura, certo? Certo. Então imaginem o cenário. O actual namorado deixou para trás uma ex que não compreendeu e com quem não soube lidar, sentindo-se injustiçado. É lógico que vai logo contar à actual que a anterior não prestava , porque, benza-os deus, precisam todos de colinho. Pode dizer pouco, pode dizer muito, mas o que quer que diga vai ser sempre pouco. É verdade que vai validar a existência da actual, que em comparação ao negro da ex ganha aos pontos, mais boazinha, mais compreensiva etc. etc. Mas, e isto é que o nosso homem não percebe, é que as mulheres, a esmagadora maioria das mulheres são inseguras, por isso a sensação de superioridade não vai durar muito. Se a actual é mais nova, inveja na outra a experiência, a sofisticação, se é mais velha, inveja na outra a juventude. A outra acaba por ter sempre o direito de precedência, e se por acaso tem filhos do actual, tem um lugar inalienável e há-de ser uma ameaça a minar a segurança da actual, mesmo que já tenham passado vinte anos. E esta complexidade há-de sempre escapar ao homem médio, que cairá na mesma armadilha uma e outra e outra vez e dar por si com uma colecção de ex que se odeiam mutuamente e o odeiam igualmente e só se uniriam em alguma circunstância na vida se essa incluísse comer-lhe o fígado. E aí seriam todas igualmente calmas, boazinhas e compreensivas.
A mim, para dizer verdade, todo este efeito Rebecca me cansa e entristece. Não cheguei a esta idade isenta de culpas (graças a deus) ou de defeitos (como se vê pela figura em anexo), mas ser pintada como uma psicótica desequilibrada por um ou outro ex com menos amor à pele sempre me pareceu eminentemente injusto. É que, compreendam, sou uma ex absolutamente exemplar: não melgo, não atrapalho, não escrevo, não telefono (e não posso ser responsabilizada se continuam vir aos meus blogs para se aborrecerem, era escusado, mas é problema deles, e facilmente resolvido). Sou uma senhora. O que significa que nunca estou lá para me defender, ou para desfazer minhocas na cabeça das pós-adolescentes complicadas por quem sou trocada rotineiramente. E apesar do meu coração se encher muitas vezes de compaixão por elas , qualquer aviso, qualquer comentário, por mais solidário seria sempre mal interpretado, dando apenas mais consistência aos rumores de que sou uma cabra psicótica e vingativa que existe exclusivamente para lhes fazer uma vida num inferno. O que me aborrece profundamente, pois não me limito a pregar a solidariedade feminina, pratico-a.
Serial mind-fuckers hão-de existir sempre. Como expliquei cima, às vezes não o fazem sequer de propósito, não conseguem evitar. Mas o efeito Rebecca não é inevitável. Antes de mais, há que pensar que ele origina de falta de autoconfiança e inseguranças. Uma mulher resolvida e segura de quem e como é não se deixa intimidar por ex nenhuma, por mais intimidante que esta possa ser. Depois, se acreditam piamente em todas as pequenas coisas que saem da adorável boquinha do vosso amado, estão a pedi-las. Acreditam piamente que a relação anterior foi um pesadelo do principio ao fim ? Só se esta só tiver durado meia-hora. Os homens são comodistas, se são estão mal mudam-se logo para onde estão melhor. Acreditam que a culpa foi só dela? Então as relações só se vivem a um? Só um é que controla, que determina como é vivida? Bullshit. Sejam espertinhas, sim? E deixem as Rebeccas descansadas nas vidas delas. Afinal, estão mortas, ou não? Vão por mim que eu é que sei. Been there, done that, got the t-shirt to prove it. Mesmo.
6 comentários:
Bem, mas o que passou? Para além de leres o livro, claro?!...
Telefona-me!
Uma frota
Como sempre que visito seu blog, encanto-me com suas divagações, encantei-me também desta vez.
É incrível como é difícil se relacionar, ainda quando a coisa vai bem, então imagine quando vai mal...
Ângela
Tinokas, estes textos, de A a Z estão pensados há já muito tempo. Por uma questão de conseguir manter os diferentes blogs preparo dois ou três sempre de antecedência, de modos que o que está nos textos, nestes em particular, não tem a ver com o que se passa na minha vida nesta altura. E aquilo que os meus ex e os ex no geral dizem sempre me irritou, tu sabes. Mas obrigada, amiga, eu sei que te preocupas e que posso contar contigo sempre.
Luv ya, ligo-te à noite
uma frota
i.
Angela, obrigada pelo comentário tão simpático. Vá aparecendo.
Lembro-me distintamente desta conversa ha uns dias atras... e o copasso de espera entre essa conversa e este texto ajudou no sentido de refinares a ironia. Sim, que partir a louca nao e coisa que uma senhora faca o qu nos deixa, como disseste, numa posicao estupida porque, por mais satisfatrio quefosse partir um osso ou dois ao palerma que teve o mau juizo de nos deixar e ainda por cima, caluniar, as nossas maes ensinaram-nos melhor qu isso. O que significa que e um handicap que nao temos esperanca de escapar, Ha la justica no mundo?
beijos
Su
De facto não tinha visto as coisas dessa perspectiva, como um handicap, mas é o que é.
Quanto ao compasso de espera é absolutamente necessário, nunca ninguém reage(ou escreve) bem a quente. Nem eu tenho tempo para isso, diga-se.
Luv ya
i.
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