quarta-feira, março 14, 2007

O cânone da beleza



Penso frequentemente que a beleza, como valor absoluto, tem as suas próprias lógicas e leis que anulam todas as regras do universo natural. A beleza vale-se a si própria, justifica-se a si própria, conmeça e termina em si, como os ciclos perfeitos de retorno universal. É incrível a quantidade de coisas que uma pessoa bonita- homem ou mulher- consegue fazer às cavalitas dela. A beleza predispõe-nos logo favoravelmente para a pessoa, estamos sempre mais dispostos a acreditar, a perdoar. Porque estar de posse de beleza, mesmo na posse efémera do amor, é uma espécie de amuleto, o nosso talismã contra as dores da vida e contra o seu fim, contra a morte.
Apesar de, nos homens, se estar a notar cada vez mais a pressão da beleza, numa mulher, a ausência dela é imperdoavel. Historicamente, ser bela é a sua obrigação enquanto género (assim como ser frágil e ligeiramente tonta, mas isso é outra conversa) e a falta de beleza significa que essa mulher o é incompletamente, uma espécie de flor do papel de parede, a ser ignorado.
Ética, filosofia e religião passaram séculos, milénios, a avisar-nos dos erróneos que os sentidos são e de que o que conta mesmo é o que está dentro e no entanto basta um gesto de mão, um relance da beleza e foi tudo ao ar, não há nada a dizer. Ou como diria e.e cummings:
Já que sentir é primeiro
quem presta alguma atençãoà sintaxe das coisas
nunca hei-de beijar-te por inteiro;

por inteiro ensandecer
enquanto a Primavera está no Mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são o melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores-
o melhor movimento do meu cérebro vale menos que
o teu palpitar de pálperas que diz

somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo
E a morte julgo nenhum parêntesis

Se a beleza, ou a ausência dela, se limitasse a influir na vida amorosa (arruiná-la, mais precisamente) já era mal bastante. Mas não, são todos os aspectos da vida afectados, desde o emprego que temos até à forma como somos tratados nos correios. A falta da beleza, ou, pelo menos, do elusivo "bom aspecto" torna-nos invisíveis, intocáveis. Numa época de políticamente correcto em que não se pode gozar com nada, os feios são o último reduto de temas hilariantes. Os alvos fáceis da piada maldosa.
Uma pessoa feia não terá nunca direito ao trágico. Uma mulher bonita lavada em lágrimas por um amor não correspondido (as if) tem compaixão e simpatia, uma feia lavada em lágrimas tem direito sempre a um risinho irónico e um, pois, não admira nada, mental. Até para o sofrimento há que ter estilo, senão vejam os risos que as cantoras de ópera gordinhas têm ao cantar, por exemplo, a Norma. A Maria Callas ficou famosa como diva incontestável não apenas pelo bem que cantava- e cantava- mas pelo modo como era bela como as mais belas no papel da torturada sacerdotisa norma. A Monserrat Caballé cantou a Norma igualmente bem (e com mais humanidade) e toda a gente se riu, vá-se lá saber porquê.
A beleza é o último dos espartilhos, o pior, porque é aquele que não podemos tirar. Aquele que é mais difícil de convencer. Volumes de retórica feminista, de filosofia e religião e sabem uma coisa? Tudo se desfaz com o golpe de pestanas que desperta o desejo, não há volta a dar-lhe.

4 comentários:

Anónimo disse...

Quero comentar esta tua entrada, mas há várias coisas que me vêm à cabeça:
1- Occam's razor: all things being equal, the easiest explanation is usually true. É como a velha piada: há mais gente estúpida que gente cega, daí que o cânone prevalente, a medida de todas as coisas seja a beleza- seja ela do formato que fôr- desde que o homem passou a representar ideias em objectos concretos.
2- Parafraseando uma das tuas entradas de alguns meses atrás, "Beauty is in the eye of the beholder and it may be necessary, from time to time to give a stupid or misinformed beholder a black eye"- a beleza é sempre relativa. Há muito poucos valores absolutos e normalmente estão confinados a um espaço de tempo o que, obviamente, os nega como absolutos. E no entanto, não há como escapar a caber ou estar excluido de um desses cânones. O que me leva a argumentar que a chatice é ter nascido na época errada. Uma Naomi Campbell teria sido a escória da sociedade pré historica, da mesma forma que essas mulheres pintadas por Rubens se vêm agora na folha dos feios.
3- Hà um moço- a quem não consigo definir a idade- que costuma perdir esmola nos corredores do metro na zona de Covent Garden. Está horrivelmente queimado por todo o corpo e daquilo que ele deve ter sido, não sobra nada. E ninguém com que eu falei escapa aquele arrepio quando olha o dito moço. É essa mesma a minha reacção-como se aquilo fosse contagioso. A deformidade continua a ser o único tabu, o único cânone absoluto de ausência de beleza.
4- e finalmente... olha que tu também podes falar: todos os eye candy que tens posto aqui...

Sempre tua

Su

Passionária disse...

Eu, amiga, como a Juliana do primo Basílio, não quero fazer uma revolução, apenas quero ser a patroa, e não a empregada,lol. Bijinhos
I.

Rosmaninho disse...

Lembra-me um texto de Anita Brookner, de um dos meus livros preferidos, e sobre o qual já escrevi: “(…) já reparei que homens muitíssimo simpáticos, e mulheres muitíssimo belas, exercem sobre os outros um poder que eles próprios não têm necessidade, ou tempo, de analisar. Pessoas como o Nick atraem admiradores, adeptos, seguidores. Também atraem pessoas como eu: observadores. Nunca se está bem à vontade com essa gente, porque são como soberanos e é preciso diverti-los. Facetas como o valor ou o mérito raramente recebem grande atenção da sua parte, porque, com o poder de escolha que a sua aparência lhes confere, podem mudar de ideias sempre que lhes dê na cabeça. Devido ao seu largo âmbito de possibilidades, o leque da sua atenção é muito limitado. E a sua beleza acostumou-os a uma gratificação contínua.” (http://ajulgarpelasaparencias.blogspot.com/2005/06/bons-ares.html)
Gosto de passar por aqui.

Anónimo disse...

19/05/2009