Cresci a ouvir Roberto Carlos. Havia espalhadas lá por casa e pela casa dos meus avós uma data de cassetes e uns poucos de discos, a consequência natural de serem casas de muitas mulheres, e todas novinhas, nos vintes, já que as minhas tias têm cerca de dois anos entre cada uma, como se fosse um relojinho.
De todas as minhas tias, no entanto, a mais propensa a ouvir Roberto Carlos de manhã à noite era a minha tia T. Não sobrecarregada com a beatice da minha tia L, que levava o seu segundo nome, Dos Anjos, muito a sério e passava a vida a ser mordoma e enfeitar andores, sem a exuberância espanholada da minha tia A.R , dona e senhora de uma cabeleira de caracóis até à cintura e umas quantas rosas de seda para enfeitar a mesma ou o amor indiscriminado da minha tia A.A. por tudo o que se mexia e levava a chamar meus filhinhos até aos perus, e seguramente sem a austeridade contida da minha mãe, a minha tia era a mais tímida e romântica. As fotonovelas, que foram das minhas primeiras leituras (a Anita era muito fixe e tinha roupas fabulosas, mas nas fotonovelas beijavam-se- e na BOCA!!!) eram dela. O disco do Marco Paulo, cujas letras eu conhecia de cor aos cinco anos (ninguém ninguém, poderá mudar o mundo, ninguém ninguém é mais forte que o amooooooooooooooooor) era dela. Talvez por isso a associe tanto com o Roberto Carlos e associe o casamento dela com as noções infantis que tinha do amor romântico.
Pelos olhos de criança dos meus oito anos vejo-a vestida de branco e o meu tio de fato azul-escuro e todos estávamos felizes. Vejo o meu avô e a minha avó rígidos nas roupas de festa, as mãos calosas do meu avô nos meus ombros, a minha expressão ligeiramente espantada de olhos muito abertos e a segurar uma ponta do vestido de menina das alianças Vejo claramente a minha irmã, alta, só joelhos e cotovelos e magreza desajeitada do início da adolescência num vestido de laço e flores que odiava. Vejo ainda, apesar de não haver fotos (as que fizeram ficaram desbotadas por causa do fotógrafo ter feito asneira a revelá-las) as minhas tias A.A e A.R grávidas ao mesmo tempo, de pernas inchadas, sufocadas nesse dez de Junho, a brincarem sobre qual teria o bebé primeiro (foi a minha tia A.A, mas continua até hoje a chamar filhinho a tudo). Lembro a minha mãe de preto e uns óculos enooooooooooooooooormes que agora estão na moda a olhar para mim de lado não fosse eu fazer asneira (o que, admitamos, era a minha especialidade) e lembro-me de pensar: o amor é isto. Nos meus olhos de criança vejo-os como estão nessas fotografias de cores demasiado expostas e pensar que amar, casar, era aquilo, a família junta e feliz num dia de sol onde os adultos bebiam um bocadinho demais, as crianças corriam por todo lado na mãe de todos os sugar rushes e os noivos dançavam devagarinho ao som do Cama e Mesa do Roberto Carlos e se beijavam à frente de todos (na BOCA!!!!!).
Passados vinte e cinco- não, desculpem, vinte e seis- anos desse momento, e sabendo o resto da história (nascimentos e baptizados, mortes e zangas, sucessos e desgraças, pessoais e do resto da família) tenho pena de ter perdido a capacidade de olhar para o amor com essa inocência, com esse romantismo doce e simples. Porque é que o amor tem de ser vivido com o pathos de uma canção dos Muse? Perdemos, eu certamente perdi, a capacidade de ver o amor de forma simples, de acreditar que a felicidade eram beijinhos (na BOCA!!!) ao dançar agarradinha ao meu amor uma canção do Roberto Carlos. Parece-me eminentemente razoável, como razoáveis são, aliás, as utopias e demais sonhos impossíveis, que o amor tenha a aspiração de ser tudo na nossa vida: a cama que nos repousa, o pão que nos alimenta, a água que nos lava e purifica, o calor do sol na nossa pele naqueles dias de Verão em que, sem conhecermos o que o futuro nos reserva, estamos juntos e somos felizes.
4 comentários:
Acho que não foi só a nossa inocência que se perdeu. Isso era uma coisa de época, de tempo que se perdeu- e nem me vou pôr a comentar se bem, se mal. Mas já não se canam canções assim, porque já ninguém vive assim. É o velho dilema do ovo e da galinha: se o tempo perdeu essa inocência cor de rosa porque envelheceu ou se o perdeu porque nós vimos outras coisas.
Um facto permanece: as coisas pareciam tão mais simples de navegar nesse então.
Jinhos
Su
Sabe minha cara, apesar de todas as vicissitudes por que venho singrando e sangrando ainda acredito nisso. Quando deixar de acreditar nem sei o que será de mim. Enquanto acreditar nisso tenho forças para resistir e quem sabe para espalhar a boa nova, se deixar de acreditar no amor não saberei em que acreditar.
Vicente da Rosa
Imagina, você aí em teu país e eu aqui no meu, e ambas ouvindo Roberto Carlos...
Morei até os 23 anos no Rio de Janeiro, tive este privilégio, e ouvi de muito pertinho Roberto, Erasmo, Caetano, Gil, Chico e outros que tais.
Fiquei encantada, e mesmo considerei-me feliz por ter sabido de um outro universo também embalado por RC...
Eu também amei muito, faz já tanto tempo...
Hoje não sei se acredito ou não no amor, acho que estou muito insensível, mas lembro como era gostoso caminhar pela praia de Copacabana ou com meu amor ou pensando nele.
Sempre gosto de ler teu blog, você continua de parabéns.
Ângela
Querida Su, isso é porque fomos criadas, tu e eu, com absolutos e hoje já ninguém vê nada por absolutos: amor absoluto, família absoluta, valores absolutos. Sabemos nós que as coisas costumam ser, infelizmente, muito mais relativas, o que é muito mais difícil de lidar. Hugs n' kisses.
Caro Vicente, o amor é indiscutível, o prisma pelo qual o vemos- e sentimos- não. Mas falaremos disso um dia destes. Que bom vê-lo por cá.
Ângela, não sei se esta clareza cínica de ver a vida é boa ou má. Eu sinto uma falta terrível dessa simplicidade. Obrigada pela visita.
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