quarta-feira, janeiro 02, 2008

Deusas, musas e heroinas avulsas

A insustentável leveza do ser
Que este livro represente a maior das fantasias masculinas não é surpreendente. Que homem não sonha com um código moral que lhe justifique todos os devaneios sexuais que queira mais uma esposa fiel e uma amante sexy e inteligente? É do melhor, claro. Mas na verdade este livro é interessante de outra maneira que a de nos irritarmos com grandes escritores do século vinte: que tipo de atitudes é que nós adoptamos que validem este tipo de coisa? Que tipo de mulheres somos nós para aceitarmos este tipo de coisas? Entra então Tereza e Sabina, as faces gémeas da fraqueza feminina.
Tereza é a legítima. A esposazinha adorável, fiel e compassiva, que se culpa a si mesma pela infidelidade do marido. Ela é um fardo que o pobre carrega e não o deixa ser livre para o que quiser, como saltaricar de cama em cama. Tereza é aquele lado de nós que é fraco, carente e com falta de auto-estima. Aquele lado que justifica e perdoa todas as traições e humilhações. Eu sei que tenho um orgulho filho da mãe e, por via de regra, prefiro arrancar um dente a frio a baixar a guarda e demonstrar fraqueza, mas acreditem-me : é perfeitamemte possível ser-se boazinha demais, perdoadora demais. E olhem que não estamos a falar de uma dona de casa analfabeta e estúpida como uma maçaneta de porta, mas de uma mulher inteligente e culta. De uma mulher que não tinha absolutamente necessidade nenhuma de estar dependente de um homem e está-o até ao patológico. E isto é uma questão cultural e psicológica ao mesmo tempo: somos encorajadas pela sociedade a depositar nas mãos dos homens a esperança para a nossa felicidade e eles que nos respondam a todas as nossas necessidades, a nossa crónica falta de auto-estima faz-nos acreditar que sim senhor, que eles sabem mais que nós o que é bom para nós e se dizem que não valemos nada, não valemos. Tereza é aquele tipo de mulher que me desperta tanta compaixão como irritação, compreendendo como o amor cega e é uma armadilha das valentes, mas ao mesmo tempo faz-me ir aos arames a sua falta de iniciativa e complacência : se o meu homem dissesse que andava de cama em cama porque tinha de ser e pronto eu reagiria de forma muito diferente do "ó tudo é culpa minha que sou uma cola e da minha infãncia lixada e sou um fardo para o pobre coitadinho". Tenho uma imagem vaga de rolos da massa e de fatos reduzidos a tirinhas mas não, NUNCA um ó coitadinho.
Sabina é a outra. Igualmente inteligente, talentosa, é a amante preferida de Tomas. Aquela que mantém o chapéu de coco enquanto faz amor porque gosta de ser secretamente humilhada (o chapéu era do avô) não quer casamento nem laços emocionais e tem uma libido perfeitamente insaciável. Querem amante mais perfeita? Não, só de encomenda. Sabina é aquelas de nós que me preocupam mais. as que racionalizam tudo e se privam de muitas coisas boas por causa dessas racionalizações. O não querermos laços emocionais com ninguém é, muitas vezes, resultado de trauma passado, o sexo como desporto, apesar de ter os seus momentos divertidos (oh sim) acaba por cansar e não ter significado nenhum, mais vale ficar em casa a passar a ferro. Mas estas mulheres, estas que conseguem divorciar o sexo do amor e não querem laços nenhuns são mais um reflexo dos desejos masculinos que mulheres de carne e osso. Poucas são as amantes que não sonham com um pouco mais, com o todo. Sim, mesmo com o domingo à tarde burguês e os filhos e os cães e as station wagons. Ou qualquer outro cenário romântico que envolva, bem, não há outra maneira de o dizer, a posse oficial do ser amado, a exclusividade. Das mulheres que conheci e que mantiveram casos com homens casados, nenhuma achava a situação perfeita. Estavam resignadas, mas da resignação à felicidade vai uma estrada de vários km. Os sacanas traidores é que acham que não. Tal como Tereza, Sabina desperta-me o mesmo grau de compreensão e perplexidade. Respeito quem segue as suas convicções e vá contra as convenções para não abdicar delas. Mas não consigo deixar de pensar que toda a sua racionalização em volta do amor e das relações entre homens e mulheres não era mais que uma racionalização que escondia ou uma falta enorme de auto-estima, ou medo terrível de amar. Atrás da primeira ideia é o estão verdes, não prestam do casamento: como Tomas não pode (nem quer) mais que uma relação sem fios emocionais, racionaliza até achar que ELA mesma não os quer para nada. A segunda é movida a medo, evitando a dor de lidar com o amor que corre mal através do evitar do amor e do compromisso de uma relação exclusiva.
Onde os homens simplificam, dividindo as mulheres em categorias fixas: mães, amigas, amantes, esposas, das quais dificilmente saímos uma vez lá encaixadas, nós complicamos ao exigir tudo no mesmo homem. E depois, lidamos melhor com a frustração do termos as coisas incompletas. Teresa tinha a figura paterna que a protegia e o esposo que a acompanhava, mas não tinha a paixao do amante nem o respeito do amigo, esses eram de Sabina. E as duas viviam razoavelmente conformadas. Minhas amigas, conformadas é uma palavra terrível. Dizer que tivemos uma vida... aceitável. Nem boa, nem má, assim assim. Que nos amaram incompletamente. Que fomos, como Tereza, a oficial sofredora de um homem a quem não completávamos nem nos completava, que fomos, como Sabina, uma coisa gira com que brincar pontualmente e vivia essencialmente sozinha. Não se deixem arrastar pela insustentável leveza do ser, sejam. O que quiserem. Mudem o que precisa de ser mudado. E feliz ano novo, já agora.

2 comentários:

elisa disse...

O bom do passar dos anos é que me ensinou a não querer ser a sofredora...nem a outra. Se não há possibilidade de relação cúmplice, não haja então relação. A vida não tem de ser necessariamente a dois.
Beijos e bom fim de semana

Anónimo disse...

"Minhas amigas, conformadas é uma palavra terrível. Dizer que tivemos uma vida... aceitável. Nem boa, nem má, assim assim. Que nos amaram incompletamente. Que fomos, como Tereza, a oficial sofredora de um homem a quem não completávamos nem nos completava, que fomos, como Sabina, uma coisa gira com que brincar pontualmente e vivia essencialmente sozinha. Não se deixem arrastar pela insustentável leveza do ser, sejam. O que quiserem".

Brilhante, simplesmente!
Bravo!