quinta-feira, outubro 18, 2007

Tratado da extinção da chispalhada nas mesas portuguesas

Eu ia com pressa e com um olho no burro e outro no cigano, ou como quem diz, com um no taxista e outro no semáforo, porque mais um vermelho e estava o comboio perdido. O taxista falava e eu fazia o meu melhor para não ligar, dizendo o pontual "sim", o tradicional "claro" e o polivalente "hum". Desde há uns anos que tenho como política estrita não falar com taxistas assim como quem fala sem ser com monossílabos. Eles têm opiniões tão iluminadas como certas minas de carvão a 300 m de profundidade e é preferível calar-se e chegar segura ao destino que armar-se em passionária e levar o taxista a irritar-se e a conduzir de forma mais temerária. Parecendo que não há muitas coisas a dizer-se em favor de chegar ao destino sem ter um ataque cardíaco. Mas pronto, pressa, política e vermelhos à parte, por entre hums de assentimento, naquele dia ouvi. E a teoria era interessante. A questão prende-se com frangos de aviário. Ou melhor ainda, com chispalhada. E a maneira como a supracitada tem vindo a extinguir-se das mesas portuguesas. Sei que parece uma sentença vinda da boca da lagarta azul da Alice no país das maravilhas dito assim, mas imbuída da luz da sabedoria de um taxista lisboeta, vou tentar explicar.
Basicamente, minhas amigas, o problema dos homens de hoje, o serem fracos, indecisos, cobardolas e francamente mentirosos provém todo de um único e alarmante facto: o jantarem frequentemente frango de churrasco com batatas e arroz, a salada opcional, em vez de um dos pratos que alimentaram gerações de portugueses façanhudos. Pois uma feijoada à transmontana, pois uns pezinhos de coentrada, uma sopinha de pedra, uma dobrada, um rabo de boi ou esse epítome da gastronomia lusa, a chispalhada. Como é que um homem vai manter a fibra moral e os níveis de testosterona em alta quando só come frango grelhado? Aparentemente os níveis de colesterol e a masculinidade estão, de forma misteriosa mas inevitável, ligados, e um não pode subsistir sem o outro. As mulheres não, dizia o homem, que são outros pordentros e qualquer folhinha de alface as satisfaz. Mas um homem aceitar um jantar take away de frango (ou pizza, ou lasagna congelada, ou rissóis de compra) é uma autorização não verbal para ser subjugado pela mulher e se tornar num banana. Mal se dá conta está ele a dar banho aos miúdos, a sacar do fairy e do esfregão verde ou, indignidade última, a ir ele à churrasqueira buscar os frangos a caminho de casa para quando a esposa chegar já haver jantar pronto.
Claro que no fim da corrida de táxi, comecei a pensar. Que a chispalhada está a desaparecer das nossas mesas é inegável. Que muitas famílias por esse país fora jantam frango de churrasco e take away muitas noites por semana, uma verdade escrita na pedra como os dez mandamentos. Que os homens são, actualmente, fracos, mentirosos e indecisos é a justificação principal da existência deste blog. A questão é: estão, como disse o taxista, ligados por uma única linha lógica? Analisemos cada uma destes factores.
Que mulher da minha geração sabe preparar, de raiz, desde o pôr o feijão de molho, uma chispalhada? Eu arriscaria que poucas, a não ser que sejam cozinheiras profissionais e não tenham outro remédio. Crescemos com as nossas mães a fazê-lo, a demolhar o feijão, a deixar cozer as carnes num fogo lento e a impregnar a casa de cheiros familiares e reconfortantes (alarmantes para mim porque nunca gostei especialmente de feijão). Se as desgraçadas não tinham outra hipótese, porque não só não havia muita coisa em lata e usar o que havia em lata estava abaixo da sua dignidade, também não tinha muito mais que fazer todo o dia. Fazer refeições elaboradas alimentava a família de comida e carinho, mas também preenchia tédios. Sim, que entre a novela do meio-dia e a novela da noite, algo haveria que fazer, por isso fazia todo o sentido investir as cinco ou seis horas de trabalho puro para fazer a feijoada, a dobrada, o bacalhau, o arroz de pato. Nós não o sabemos fazer, mas mesmo que nos apeteça ser retro poucas vezes temos essa oportunidade. A mim, pelo menos, a última coisa que me apetece, quando chego a casa à noite, é enfiar-me umas quatro, qual quatro, duas horas na cozinha a fazer um prato tradicional, balhamedeus. Por isso sim, o taxista tem razão, os homens da minha geração não comem o mesmo que os da dele. Não temos tempo para fazer a chispalhada, muitas vezes nem para ver a novela, por isso comem frango de churrasco sim. Não somos como as nossas mães. Em compensação eles também não são como os nossos pais: demonstram menos propensão para deixar crescer a unha do dedo mindinho, para beber café com cheirinho, deixar crescer a bigodaça à pai de família e abrir os botões da camisa até ao umbigo e mais para ajudar em casa, por isso parece-me que o desaparecimento da chispalhada não é assim uma coisa tão negativa. Mas a verdade é que ainda não analisámos a fibra moral. Vamos lá a ver.
Têm os homens hoje menos fibra moral que os homens da geração dos nossos pais, por exemplo? A resposta é complexa. Se sim, por um lado, porque são pais mais presentes e cooperantes, maridos menos ausentes, menos autoritários, não por outro. A geração que nos antecedeu construiu relações sólidas, que duraram (e duram) várias décadas. Criaram filhos, educaram-nos, viram nascer netos e continuam lá, onde devem. Os homens da geração anterior tinham uma tradição de marialvismo machista que lhes justificava todas as puladelas de cerca. Os da nossa comprometem-se menos, mais tarde, e mesmo assim não é inaudito deixarem a família por meninas de vinte e poucos. Por isso, é ela por ela. É como a chispalhada: não nos exigem a refeição perfeita na mesa às oito e meia e comem o frango sem refilar, mas também temos menos garantias que fiquem lá em casa para jantar. Aí, a teoria é inconclusiva.
Assim, temos de nos perguntar se é assim tão grave que a chispalhada esteja em vias de extinção. Transmite a ideia errada às crianças que apenas conhecem a chispalhada como uma coisa que vem numa lata? Não me parece. A sociedade modificou-se imenso nos últimos trinta anos, libertando as mulheres de muitas coisas, incluindo do dever fastidioso da cozinha. Libertou também os homens, para o bem e para o mal. Por isso temos apenas de ver a chispalhada como uma vítima da dialéctica da história. Os miúdos desta geração nova que vêm a chispalhada como coisa de uma lata também aprendem que a mãe não tem tempo para tudo nem é a super-mulher, que o pai ajuda e que é assim é que deve ser. A chispalhada parece um preço pequeno a pagar por isso. E, de qualquer maneira, o frango tem menos colesterol. E isso, sim, não muda com o tempo.

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