quarta-feira, outubro 24, 2007

Musas, deusas e heroinas avulsas



Inês Pereira e os cavalos que nos derrubam
Se havia alguma coisa Gil Vicente fazia bem, essa coisa era escrever papéis para mulheres práticas. Mais cómicas ou mais sérias, melhores ou piores pessoas, mas era gente prática. E que mais podia fazer uma mulher com inteligência e imaginação fazer num mundo de homens senão ser prática? Conformar-se o estritamente necessário e arranjar maneiras de satisfazer a dita inteligência e imaginação usando o sistema a seu favor? Nada, minhas amigas, ab-so-lu-ta-men-te nada. Uma mulher, minhas caras, tem de fazer pela vida.
De todas as maravilhosas mulheres esboçadas por Gil Vicente, nenhuma é tão prática, irónica e divertida como esta Inês Pereira. Esta rapariga faz pela vida. E bem. Claro que se quiserem ser puristas podem ver esta Inês Pereira como fútil e oportunista mas aviso desde já que hoje não estou para isso. Não. Isto hoje está para lhe elogiar o espírito prático, por isso vamos lá.
Toda a peça está baseada num provérbio sábio (claro, por alguma coisa é provérbio!): mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube. E a pele de quem a lição sai é a de Inês. Sendo ela moçoila solteira e de sangue quente, opta pelo pretendente bem-falante que lhe promete mundos e fundos, que se revela uma grande cavalgadura, em vez do meigo e gentil pretendente a atirar para o asno. Moral da história, o cavalo dá-lhe uma bela parelha de coices pelo que regressa ao asno, que asno ou não a deixa fazer o que lhe apetece. O que é, como já disse antes, de um pragmatismo admirável. A ironia do final da peça, em que ela convence o marido a carregá-la a ela, a duas lousas e ainda a cantar alegremente da sorte que tem por assim fazer não me escapa a mim, como não lhe escapa a ela: pois não é assim que as coisas se fazem? É, se quisermos ser práticas em vez de idealistas. Os ideais são tão bonitos, mas já têm causado por esse mundo fora mais que um amargo de boca.
Apesar de não aconselhar a ninguém a procurar activamente um asno que as leve, até porque, para uma mulher com inteligência e imaginação isso pode ser frustrante e entediante, um pouco do espírito prático que esta Inês demonstra não faz mal a ninguém. Até porque pelo que dá para perceber ela é uma junkie de amor tóxico em recuperação. A Inês Pereira é, se quiserem, no fim da peça, a antítese do amor tóxico. É a realidade levada até ao cinismo cruel, mas prático,de quem faz o que pode para levar a água ao seu moinho, seja isso ético ou não. E sou-lhes honesta, não posso dizer que não a compreenda: que atire a primeira pedra aquela que não ficou só um niquinho nada cínica depois de ser derrubada por uma besta. E mais não digo, que isto já é muito profundo.
"Inês
«Marido cuco me levades
E mais duas lousas.»
Pêro Marques
«Pois assi se fazem as cousas.»
Inês
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.»
Pêro Marques
«Pois assi se fazem as cousas»
Inês
«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»
Pêro Marques
«Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

2 comentários:

Unknown disse...

Quem não levou já uma "parelha de coices"?! Só temos de ser uma Inês Pereira: aprender com os erros e deixarmo-nos de ilusões parvas

Passionária disse...

Minha querida Cris, como se notam os anos que nos conhecemos, já pensamos igual...