sábado, maio 23, 2009

Unicórnios (II)


Para continuar com as minhas reflexões dos unicórnios, retomo onde parei: em Pessoa. O poeta é um fingidor, obviamente que tem de ser, mas quem diz poeta diz escritores no geral, particularmente no que diz respeito à categoria do romance, não ficção, que não é sinónima, do romance. Em português isso chama-se verosimilhança, mas a verdade é que prefiro o equivalente inglês, porque mais claro: suspension of disbelief.
Para apreciar uma história, qualquer tipo de história, temos de suspender a nossa descrença, o nosso cinismo natural e entrar no espírito da coisa. Assim estamos num universo onde existe imprinting de almas gémeas, ou no Portugal do século XVIII, onde amantes perfeitos caçam vontades, na corte arturiana onde Lancelot e Artur disputam Guinevere (apesar de gostar mais do spin que Marion Zimmer Bradley deu a esse mito em particular). Mas a questão é: depois de ler o livro, quando devemos retomar essa suspension of disbelief? Quando ligar de novo o nosso cinismozinho duramente ganho? E ainda mais importante, conseguimos fazê-lo?
A minha amiga Su passa a vida a dizer que certos romances deviam vir com as mesmas etiquetas que as garrafas de veneno, porque funcionam como um elemento tóxico na cabeça, no coração de quem os lê. E eu concordo com ela. É verdade que as histórias de amor romântico estão na génese de praticamente todas as civilizações que dominam a escrita. Mas todos nós sabemos qual a percentagem de amores felizes, verdadeiramente felizes que conhecemos, a estatística não é nada animadora. Disse antes que estas histórias servem de consolo e conforto num mundo cheio de variáveis que não controlamos. Mas não será também, sobretudo, uma forma de engano, de mentira bem intencionada e gira, como o pai-natal, que mais cedo ou mais tarde vamos ter de dar por falsa?
As civilizações orientais, até a nossa até ao século XIX tinham uma abordagem muito mais realista: acabar as histórias de amor em tragédia. Tristão e Isolda têm um fim infeliz, Lancelot e Guinevere também, Abelardo e Heloísa, na vida real seguem-lhe as pisadas. Assim deixam logo os leitores avisados do que esperar. É prático. Até os contos de fadas tinham, apesar dos fins felizes, contornos mais negros que aqueles fixados pelos Grimm ou por Hans Christian Andersen em texto. Associam, muito mais intimamente que agora os romances as duas forças motrizes da humanidade: Eros e Thanatos, amor e morte. Só uma classe como a burguesia protegida dos inícios do século XIX, como era a de Austen, se lembraria de diluir o vermelho em cor-de-rosa de casamentos adequados e finais felizes. E de fazer vingar essa versão educadinha das relações humanas.
Considerações sociológicas à parte, esta visão das coisas serve os nossos fins ou nem por isso? Será tóxica, como diz a Su? Será que nos faz, como continua a minha mana a dizer num momento de particular inspiração, correr atrás de touros porque os confundimos com unicórnios? Depende da vossa visão da humanidade.
Há quem acredite, intrinsecamente, no valor intrínseco do amor romântico, descartando falhanços amorosos como enganos até ao amor verdadeiro (que para além de tamanhos, parece que também traz selo de produto de origem). Outros há que pois nem por isso, e que preferem ver os falhanços como a ordem das coisas e o amor verdadeiro como unicórnios: só pertencente em histórias de crianças.
Somos uma espécie imperfeita. Nunca satisfeita, mas também incrivelmente resistente. A esperança é um daqueles valores tão humanos que nos define completamente. Somos humanos porque temos esperança. Se vale a pena continuar à caça de unicórnios ( mesmo que, segundo a mitologia própria só sejam capturados por virgens, que vão escasseando) ainda não sei. Mas se descobrir a resposta logo lhes digo.

Quentes e frios

Hoje, caríssimas, em vez de perorar sobre os chatos que inundam as nossas vidas, deixo-lhes o video da Katy Perry para expôr a minha visão das coisas. A reparar, com especial atenção, a partir da marca dos 2:10.
Isto de escreverem posts por nós é giro.

terça-feira, maio 12, 2009

Unicórnios (I)


Agora está na moda o Twilight, mas houve outras antes; a Bridget Jones antes, as coisas do Paulo Coelho, as fotonovelas e os livros da Corin Tellado no tempo das nossas mães e outros romances mais atrás. Se o Harold Bloom não fosse a criatura pastilhenta que é, até poderia escrever sem qualquer problema qualquer coisa como "O Cânone do Romance", apesar da ideia de o ver debruçar-se sobre as obras da Nora Roberts ou da Amanda Quick ser risível.
O romance sempre esteve na moda, sempre estará. As obras actuais reescrevem e reinventam os clássicos do século XIX (e todos os paralelismos do Twilight com a Austen NÃO são pura coincidência), mas estes não são originais na técnica nem temática, bebendo influências das obras renascentistas, como Shakespeare, como o nosso Bernardim e estas, por sua vez as anteriores, os romances de cavalaria, até mesmo alguns aspectos de hagiografias medievais... E a linha estende-se até ao infinito, até aos primórdios da palavra escrita. Mesmo em culturas que não fazem parte do cânone estético ocidental também há esta permanência de narrativas românticas (no sentido original de romance, talvez, em vez da coisa cor-de-rosa para o que está díluido hoje o termo). Tudo o que precisamos, como dizem os imorredoiros Beatles, é amor.
Se estivermos virados para isso poderemos até traçar características comuns, tipo de personagens, tipo de episódios, mas a ideia é moça pura (merecedora), moço esforçado (merecedor), um grande amor (como se viesse este com etiquetas de S, M, L, XL ou XXL) e obstáculos, que podem ser ou não superados, que podem acabar com filhos ou com a morte, mas o amor não acaba. O amor aparece-nos assim, em todas as narrativas, não só como uma coisa rara, uma espécie de fenómeno feliz num mundo carregado de gente cínica, mas também como uma espécie de linha de horizonte, o ideal que vemos e, apesar de ser visível, nem sempre é atingível. É assim uma espécie de unicórnio, com a mesma mitologia que lhes é associada: força e pureza. E, desgraçadamente também se pode revelar um ser mitológico de que há relatos mas ninguém vivo tem provas concretas da sua existência.
Porque precisamos destes relatos de amor, deste unicórnio de mito, é uma coisa interessante: tem a ver com a propagação da espécie, pois do amor resultam, com sorte, criancinhas, mas vai para além disso. Acho, na minha humilde opinião que tem a ver com esperança, com conforto. Tal como o sangue do unicórnio dá, no Harry Potter, alento (apesar de ser uma meia-vida) àquele cujo o nome não será pronunciado, também as narrativas de amor servem de conforto às almas cínicas que, como eu, acham que a probabilidade das coisas acabarem em lágrimas e recriminações é mais alta que terminarem num happy end.
O romance é um produto de consumo quase exclusivamente feminino, mas também quem mais precisa de alento e consolo nestas coisas são as mulheres. Os homens sempre tiveram mais escolha, mais controlo sobre a sua vida emocional que as mulheres. Florentino Ariza passa cinquenta anos à espera da mulher que ama, mas teve muito mais liberdade sexual para procurar o seu contentamento de Fermina, para quem a monotonia, digo, monogamia era uma imposição sem apelo nem agravo. Para as mulheres o género romance é uma espécie de conforto, como gelados ou chocolate onde, num universo controlado, as coisas correm como seria de esperar. Pronto, se em vez de lerem Nora Roberts lerem Garcia Marquez as coisas nem sempre terminam bem, mas pelo menos sabemos com o que contamos, que é mais do que se pode dizer sobre a vida em geral, cheia de rasteiras e de facadas à traição.
Apesar de ser relegado para um canto pouco iluminado da história da literatura, poucos géneros literários subsistem tão bem como ele. Kafka é um excelente escritor, mas as massas pouco educadas (e apreciem a ironia) do mulherio que lê não encontra nele qualquer conforto. Ninguém encontra conforto nenhum numa história em que um indivíduo se transforma em barata ou que é preso sem se saber bem porquê.
Precisamos de romance. Todas as gerações têm referências diferentes, porque todas acham ser as primeiras a descobrir o amor, mas este está presente em todos os tempos, em todos os lugares. Podem ser mitos, mas como diz o nosso querido Fernando Pessoa:
"O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo
Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre. "

segunda-feira, maio 04, 2009

Tess

Antes de eu nascer a minha mãe tinha decidido que eu ficaria com o nome da minha madrinha, Teresa. A minha madrinha, uma das irmãs da minha mãe, aprovava intensamente. Claro que todos os melhores planos estão fadados ao fracasso e Teresa é apenas uma agradável memória daquele que poderia ter sido o meu nome em lugar daquilo que ele é (e as minhas amigas, em comentários, estão TERMINANTEMENTE proibidas de o repetir). Se a minha madrinha ficou desapontada por não ver o seu nome perpetuado na geração seguinte nunca o demonstrou. Foi, pelo contrário uma presença constante ao longo da minha infância, e pode-se dizer que muito do que eu aprendi sobre a vida, os homens e o amor foi com ela e com as amigas dela. Sentada num canto (ao longo da minha infância ficar a um canto a ver e ouvir era um passatempo preferido, aliás, hoje também é) ouvia-as conversar sobre amores e desamores, propostas de casamento, diferentes pretendentes, amores ilícitos , mulheres abandonadas em escândalo and so on, and so on. Não que a vida no lugar onde cresci fosse assim tão excitante, a pulular de tensão sexual e amores secretos, mas as pessoas têm lá grandes imaginações e memórias ainda maiores. De qualquer forma, tinha a minha tia mais que assunto para falar, mesmo sem se prestar a sessões de má-língua , pois era bonita, namoradeira e alegre e as amigas eram muitas e complicadas. Nunca usaram de meias-palavras ou eufemismos piedosos nestas conversas, as coisas eram o que eram, mesmo com uma miúda a ouvir. Essa era a mentalidade do sítio onde cresci, sem papas na língua nem superprotecções às criancinhas. As coisas más que aconteciam serviam como advertência às gerações seguintes e pronto.
Quando li o Tess, e li-o bastante cedo, a sensação que tinha era que a conhecia, que já tinha ouvido esta história, ou muitas muito parecidas. No Portugal retrógrado e no seio da sociedade ultra-conservadora em que fui criada as histórias de mulheres seduzidas e abandonadas eram muitas, e terminavam sempre mal (como deviam, para que o mulherio não se pusesse com ideias de igualdade sexual e por aí adiante). Mas se conhecia a história, não conhecia o tom da mesma. Quase podia ouvir a minha tia e as amigas a comentar a história da rapariga seduzida pelo filho do patrão (facto, aliás, bastante corriqueiro) que engravidava. Mas o tom de compaixão era novo. A sensibilidade com que esta Tess é tratada é nova. E ler isto aos onze anos foi um passo claro no caminho de ser aquilo que sou hoje. Admirava Tess pela sua capacidade de amor, pela sua capacidade de sofrimento, despertando em mim uma empatia por seres em sofrimento que ainda hoje rege a minha forma de ser e estar.
Devo, aliás, dizer, que durante muito tempo me identifiquei com ela. Mas o conhecimento primário da vida que absorvi da minha tia Teresa e das suas histórias de Tess à portuguesa, a compaixão e identificação primária com aquele ser sofredor, constantemente mandado abaixo por golpes de vida madrasta sorvido do livro foram substituídos por emoções e reflexões mais complexas, menos a preto e branco. Aquilo que penso hoje sobre sofrimento, sobre vítimas indefesas é completamente diferente. Como diz São Paulo no célebre Capítulo 13 da Epístola aos Coríntios, quando éramos pequenos fazíamos coisas de meninos e pensávamos como meninos, mas não mais. Vi em Tess apenas a vítima indefesa, mas suponho que não tinha visto nela outra coisa, que vejo agora com outra maturidade: a capacidade de resistência a todos os golpes, a capacidade de sobrevivência. Não percebia, como percebo agora, que só somos vítimas por escolha. Sobreviver,superar é mais difícil que ser vítima, mas mais compensador. Ser vítima pesa a nós, pesa aos outros. Ser sobrevivente é aguentar-se nos seus próprios pés, de peito aberto para o que vier, mesmo que seja apenas mais um golpe, mais uma desilusão. E só isto, só esta lição, já vale a pena a leitura (e releitura) deste livro.