terça-feira, maio 12, 2009

Unicórnios (I)


Agora está na moda o Twilight, mas houve outras antes; a Bridget Jones antes, as coisas do Paulo Coelho, as fotonovelas e os livros da Corin Tellado no tempo das nossas mães e outros romances mais atrás. Se o Harold Bloom não fosse a criatura pastilhenta que é, até poderia escrever sem qualquer problema qualquer coisa como "O Cânone do Romance", apesar da ideia de o ver debruçar-se sobre as obras da Nora Roberts ou da Amanda Quick ser risível.
O romance sempre esteve na moda, sempre estará. As obras actuais reescrevem e reinventam os clássicos do século XIX (e todos os paralelismos do Twilight com a Austen NÃO são pura coincidência), mas estes não são originais na técnica nem temática, bebendo influências das obras renascentistas, como Shakespeare, como o nosso Bernardim e estas, por sua vez as anteriores, os romances de cavalaria, até mesmo alguns aspectos de hagiografias medievais... E a linha estende-se até ao infinito, até aos primórdios da palavra escrita. Mesmo em culturas que não fazem parte do cânone estético ocidental também há esta permanência de narrativas românticas (no sentido original de romance, talvez, em vez da coisa cor-de-rosa para o que está díluido hoje o termo). Tudo o que precisamos, como dizem os imorredoiros Beatles, é amor.
Se estivermos virados para isso poderemos até traçar características comuns, tipo de personagens, tipo de episódios, mas a ideia é moça pura (merecedora), moço esforçado (merecedor), um grande amor (como se viesse este com etiquetas de S, M, L, XL ou XXL) e obstáculos, que podem ser ou não superados, que podem acabar com filhos ou com a morte, mas o amor não acaba. O amor aparece-nos assim, em todas as narrativas, não só como uma coisa rara, uma espécie de fenómeno feliz num mundo carregado de gente cínica, mas também como uma espécie de linha de horizonte, o ideal que vemos e, apesar de ser visível, nem sempre é atingível. É assim uma espécie de unicórnio, com a mesma mitologia que lhes é associada: força e pureza. E, desgraçadamente também se pode revelar um ser mitológico de que há relatos mas ninguém vivo tem provas concretas da sua existência.
Porque precisamos destes relatos de amor, deste unicórnio de mito, é uma coisa interessante: tem a ver com a propagação da espécie, pois do amor resultam, com sorte, criancinhas, mas vai para além disso. Acho, na minha humilde opinião que tem a ver com esperança, com conforto. Tal como o sangue do unicórnio dá, no Harry Potter, alento (apesar de ser uma meia-vida) àquele cujo o nome não será pronunciado, também as narrativas de amor servem de conforto às almas cínicas que, como eu, acham que a probabilidade das coisas acabarem em lágrimas e recriminações é mais alta que terminarem num happy end.
O romance é um produto de consumo quase exclusivamente feminino, mas também quem mais precisa de alento e consolo nestas coisas são as mulheres. Os homens sempre tiveram mais escolha, mais controlo sobre a sua vida emocional que as mulheres. Florentino Ariza passa cinquenta anos à espera da mulher que ama, mas teve muito mais liberdade sexual para procurar o seu contentamento de Fermina, para quem a monotonia, digo, monogamia era uma imposição sem apelo nem agravo. Para as mulheres o género romance é uma espécie de conforto, como gelados ou chocolate onde, num universo controlado, as coisas correm como seria de esperar. Pronto, se em vez de lerem Nora Roberts lerem Garcia Marquez as coisas nem sempre terminam bem, mas pelo menos sabemos com o que contamos, que é mais do que se pode dizer sobre a vida em geral, cheia de rasteiras e de facadas à traição.
Apesar de ser relegado para um canto pouco iluminado da história da literatura, poucos géneros literários subsistem tão bem como ele. Kafka é um excelente escritor, mas as massas pouco educadas (e apreciem a ironia) do mulherio que lê não encontra nele qualquer conforto. Ninguém encontra conforto nenhum numa história em que um indivíduo se transforma em barata ou que é preso sem se saber bem porquê.
Precisamos de romance. Todas as gerações têm referências diferentes, porque todas acham ser as primeiras a descobrir o amor, mas este está presente em todos os tempos, em todos os lugares. Podem ser mitos, mas como diz o nosso querido Fernando Pessoa:
"O mito é o nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo
Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos braços.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre
De nada, morre. "

3 comentários:

Anónimo disse...

Passionária,
Gostei de ter lido tuas idéias sobre o amor, pois estou planejando elaborar meu TCC - trabalho de conclusão de curso -(apesar de ser aposentada, estou fazendo o 4º semestre da Faculdade de Letras)sobre o tema "Um olhar sobre as declarações de amor do Trovadorismo ao Modernismo", e fiquei encantada com tua abordagem sobre um tema que analisarei (se Deus quiser e eu tiver capacidade) profundamente. Aproveito para novamente te dar os parabens, pois gosto muito de tuas idéias e a forma como escreves sobre elas. Ângela

acatar disse...

eu gosto de resumir as coisas: lemos romances para conhecer vidas que queríamos viver, tal como os pobres gostam de ver a vida dos ricos.

os homens talvez procurem mais uma história bem contada, não tanto o happy end

Passionária disse...

Angela, muito obrigada:).

Intruso, o texto é bastante direccionado para um tipo de literatura, o romance. Não sei por isso se consigo generalizar assim ao ponto de dizer as mulheres gostam de... por maior que seja a tentação. Mas a perspectiva de leitura como um exercício voyeuristico é spot on. Gostei da visita, vá aparecendo :)