Para continuar com as minhas reflexões dos unicórnios, retomo onde parei: em Pessoa. O poeta é um fingidor, obviamente que tem de ser, mas quem diz poeta diz escritores no geral, particularmente no que diz respeito à categoria do romance, não ficção, que não é sinónima, do romance. Em português isso chama-se verosimilhança, mas a verdade é que prefiro o equivalente inglês, porque mais claro: suspension of disbelief.
Para apreciar uma história, qualquer tipo de história, temos de suspender a nossa descrença, o nosso cinismo natural e entrar no espírito da coisa. Assim estamos num universo onde existe imprinting de almas gémeas, ou no Portugal do século XVIII, onde amantes perfeitos caçam vontades, na corte arturiana onde Lancelot e Artur disputam Guinevere (apesar de gostar mais do spin que Marion Zimmer Bradley deu a esse mito em particular). Mas a questão é: depois de ler o livro, quando devemos retomar essa suspension of disbelief? Quando ligar de novo o nosso cinismozinho duramente ganho? E ainda mais importante, conseguimos fazê-lo?
A minha amiga Su passa a vida a dizer que certos romances deviam vir com as mesmas etiquetas que as garrafas de veneno, porque funcionam como um elemento tóxico na cabeça, no coração de quem os lê. E eu concordo com ela. É verdade que as histórias de amor romântico estão na génese de praticamente todas as civilizações que dominam a escrita. Mas todos nós sabemos qual a percentagem de amores felizes, verdadeiramente felizes que conhecemos, a estatística não é nada animadora. Disse antes que estas histórias servem de consolo e conforto num mundo cheio de variáveis que não controlamos. Mas não será também, sobretudo, uma forma de engano, de mentira bem intencionada e gira, como o pai-natal, que mais cedo ou mais tarde vamos ter de dar por falsa?
As civilizações orientais, até a nossa até ao século XIX tinham uma abordagem muito mais realista: acabar as histórias de amor em tragédia. Tristão e Isolda têm um fim infeliz, Lancelot e Guinevere também, Abelardo e Heloísa, na vida real seguem-lhe as pisadas. Assim deixam logo os leitores avisados do que esperar. É prático. Até os contos de fadas tinham, apesar dos fins felizes, contornos mais negros que aqueles fixados pelos Grimm ou por Hans Christian Andersen em texto. Associam, muito mais intimamente que agora os romances as duas forças motrizes da humanidade: Eros e Thanatos, amor e morte. Só uma classe como a burguesia protegida dos inícios do século XIX, como era a de Austen, se lembraria de diluir o vermelho em cor-de-rosa de casamentos adequados e finais felizes. E de fazer vingar essa versão educadinha das relações humanas.
Considerações sociológicas à parte, esta visão das coisas serve os nossos fins ou nem por isso? Será tóxica, como diz a Su? Será que nos faz, como continua a minha mana a dizer num momento de particular inspiração, correr atrás de touros porque os confundimos com unicórnios? Depende da vossa visão da humanidade.
Há quem acredite, intrinsecamente, no valor intrínseco do amor romântico, descartando falhanços amorosos como enganos até ao amor verdadeiro (que para além de tamanhos, parece que também traz selo de produto de origem). Outros há que pois nem por isso, e que preferem ver os falhanços como a ordem das coisas e o amor verdadeiro como unicórnios: só pertencente em histórias de crianças.
Somos uma espécie imperfeita. Nunca satisfeita, mas também incrivelmente resistente. A esperança é um daqueles valores tão humanos que nos define completamente. Somos humanos porque temos esperança. Se vale a pena continuar à caça de unicórnios ( mesmo que, segundo a mitologia própria só sejam capturados por virgens, que vão escasseando) ainda não sei. Mas se descobrir a resposta logo lhes digo.