"Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo..."De acordo com o evangelho segundo Saramago basta isto: uma presença, um momento, um olhar, para o coração reconhecer e aceitar a identificação profunda do amor. Uma primeira vista que dura para sempre. Para mim, para nós, o amor à primeira vista é uma espécie de mito urbano agradável, que aconteceu ao amigo do amigo mas do qual não há nunca provas documentais concretas. Com a considerável experiência (e cinismo) que vem com a idade, preferimos acreditar na mensagem publicitada pelo Closer de Mike Nichols (na minha opinião um dos mais honestos filmes sobre a natureza do amor jamais feito) : quem acredita no amor à primeira vista, nunca deixa de procurar.
Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas são uma espécie do amor no seu estado mais puro, e, consequentemente mais perfeito: um equilibrio perfeito de yin e yang em que os dois amam na mesma medida e comprimento de onda, em que ambos são duas metades que se completam. Que são mais juntos, como unidade, que separados, e que, mesmo assim, permanecem unos e independentes. Um milagre.
A ideia de que homens e mulheres são uma metade, e que, pelo mundo anda à solta a metade perfeita para os completar é antiga. Já os gregos, a matriz cultural do ocidente, acreditavam nisso. Mas os gregos tiveram a sabedoria de acrescentar à mistura Eros, para justificar as asneiras em que os mortais se metiam, amando gente inadequada. O cristianismo, que os seguiu, eliminou a margem de erro: o amor é carne de uma só carne, alma de uma só alma, só separável pela morte. O que, evidentemente, só nos enche de medo, frustração e culpa. Medo de não encontrar, ou conseguir reconhecer, caso apareça, a nossa metade. Frustração e culpa pelos falhanços que vamos acumulando vida fora. Na nossa experiência, temos sempre de nos ajustar, há partes de nós que não encaixam, que não são aceites, e, na melhor das hipóteses, o equilibrio entre o que ama e o que é amado é de 45%/55%. Mas mesmo assim, continuamos a acreditar que possa ser verdade, que a nossa metade anda por aí, os Sete-Sóis para as nossas Sete-Luas.
Pessoalmente, aceito a palavra segundo Saramago com a mesma dose de saudável cepticismo que aceito toas as outras coisas de fé. Mas numa coisa o mestre está certo. Podemos não encontrar, pode não existir a pessoa certa yin e yang que Baltasar é, mas podemos, e devemos, amar com a mesma medida que eles dois o fizeram.
"Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, era como se calada estvesse respondendo a outra pergunta,(...)e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda tinha dito que sim antes de perguntada, então declaro-vos casados."
É bom acreditar que pode ser assim, que o que nos une são os gestos de todos os dias...
"Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires"
E que ficamos porque queremos ficar.
"Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste o que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. […] Eu posso olhar por dentro das pessoas. "
Que somos um e não metade, um dado livremente e assim aceite, um que não pertence, mas fica.
" Talvez alguém, talvez Blimunda, não por ter puxado Baltasar para a barraca, (...) mas por uma ânsia que lhe aperta o coração, pela violência com que abraça Baltasar, pela sofreguidão do beijo, pobres bocas, perdida está a frescura, perdidos estão alguns dentes, partidos outros, afinal o amor existe sobre todas as coisas. "
As coisas, se certas, são, não duram, porque o tempo devora tudo até ser pó.
"Encontrou-o.(...). Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda."
Melhor ainda é reconhecer quando não dá e, sem amargura, seguir em frente, e amar outra vez sem medida, como Baltasar e Blimunda.
Todos os itálicos são da obra Memorial do Convento, de José Saramago.
Este texto é:
Para a minha mãe, por me ter ensinado a ser como sou.
Para a minha irmã, pelos contrastes.
Para as minhas amigas, pelas cicatrizes de guerra e memórias partilhadas.
Para os homens que amei, imperfeitamente, pelo que me ensinaram.
Para quem me lê, e vai ficando por aqui, comigo.