quarta-feira, novembro 03, 2010

Considerações acerca de deusas domésticas

Normalmente basta-me ver um programa da Nigella para sentir a vontade de ser, tal como ela é, uma deusa doméstica. Isto não é particularmente surpreendente: a comida que ela faz é deliciosa e não há como não gostar da sua relação com a comida e a cozinha. A cozinha dela está cheia de kitchen porn: panelas com um design delicioso, saleiros, pimenteiros e raladores espectaculares, utensílios super práticos e, ao mesmo tempo, incrivelmente bonitos. E depois ela faz parecer tudo fácil, tudo sem esforço, como se em quinze ou vinte minutos pudéssemos fazer uma refeição para doze, desde as entradas à sobremesa e ainda uns cupcakes de brinde (o que suponho pode ser feito, só que a cozinha não fica impecavelmente arrumada nem nós com o bom aspecto que ela tem). Enquanto o programa dela decorre apetece-me aquele estilo de vida em que temos tempo para ser tudo, para todos.
Claro que depois me lembro do incrivelmente frustrante que ser uma deusa doméstica pode ser, pois soa-me a retrocesso até aos anos 40 e 50, onde as mulheres tinham como função exclusiva na vida agradarem ao marido, criarem os filhos e manterem a casa perfeita, tudo isto enquanto vestiam cintas de elástico apertadas e montadas em saltos de dez centímetros. A atitude da Nigella não é essa, pelo contrário, muito terra-a-terra, muito mãezinha, muito capaz de se rir das suas falhas (e da sua gula). Mas reconciliar a deusa doméstica com a amazona feminista não é especialmente fácil. Apetecer-me fazer o meu próprio pão, caldo caseiro ou um soufflé absolutamente perfeito não se coaduna com lutar contra estereotipos de feminilidade, ou sim?
Como gosto de cozinhar (apesar de achar grande parte das tarefas domésticas uma forma particularmente dolorosa de morte cerebral), tive de arranjar maneira de fazer funcionar em conjunto estes dois lados da minha personalidade. Consolo-me com o facto de, mesmo sabendo fazer os ditos cupcakes (com chantilly cor-de-rosa e tudo, se quiserem), sei também pois montar uma estante, desentupir um cano ou pôr um quadro na parede. Ou seja, ser uma deusa doméstica implica, igualmente, libertação: nada de saltos ou agradar um homem, nada de gritinhos quando vejo uma barata. Ser uma deusa doméstica implica auto-suficiência, o que nunca, mas nunca é submissa ou subserviente. E agora desculpem que vou ali tirar o bolo do forno...

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