quarta-feira, novembro 04, 2009

O 4-4-2

Aos vinte levamo-nos demasiado a sério, com a mania que somos adultos, sérios e responsáveis, aos trinta somos putos de catorze anos que por acaso trabalham e têm carreiras e percursos académicos e assim. As pessoas sérias estão em casa com os filhos pequenos a discutir as prestações e a conta do pediatra, com o coração intacto de quem foi feliz à primeira, sem ossinhos nem espinhas nenhumas. Não têm- não podem ter- a nossa capacidade de resistência, ou de nos rirmos de nós próprios.
Somos, aos trinta, gatos arranhados e com marcas de batalha, duros e manhosos, a olhar para o mundo com um certo desdém desconfiado: tudo, mas tudo, sabemos, pode acontecer. Não se acabam em penas e batalhas amargas por mobílias e filhos os votos de casamento? Não são os amores perfeitos miragens, ilhas, pontes quebradas, desfeitas algures no passado e na distância? Não chegámos ao presente sem marcas, nem nunca mais seremos os mesmos. Que o amor não nos engana, como diz o poeta, com a sua brandura.
Somos, como aos catorze anos, complicados, revoltados, aborrecidos. Ninguém diria, no nosso dia adulto de fatos e saltos e gravatas e reuniões importantes, de laptops e documentos os putos vulneráveis que somos na nossa noite. Choramos na casa de banho, bebemos demais, dissolvemo-nos em raivas, em risos, na música, no fumo de mais um cigarro. Discutíamos testes e notas, músicas e batons aos catorze. Nada mudou excepto talvez as conversas serem um pouco mais subtis, um pouco mais cultas, de resto somos os mesmos.
Funcionamos em grupo, também como antes, meninos para um lado, meninas para o outro. Há sempre um jogo, um esquema entre as vodkas pretas, a nossa vida emocional mede-se pelo número de SMS que recebemos e combinamos. Haverá, ou não, ao fim da noite, um táxi para voltar a casa, uma cama estranha, os momentos de náusea e solidão da manhã que nasce e nos traz para um novo dia quase intactos, quase como éramos antes.
Comemos, com a vodka ou os shots, as iguarias que servimos, que deixamos que nos sirvam: os douradinhos do amor a fazer de conta que é sexo, os rissóis do sexo a fingir que é amor, ou pelo menos qualquer tipo de emoção forte ou significativa. Jogamos o jogo, atiramos a linha, contamos, no 4-4-2 com as amigas e a determinação e as botas da moda e trinta e seis ou trinta e sete SMS que não temos coragem para apagar porque são um guia, um diário, uma testemunha para aquilo que não tem nome nem existe. Se nos tocam escuridão e na noite o toque existe? É verdade?
Não há, na noite, preocupações com a condição feminina, não nos damos a esse luxo. Estamos, demasiado para lá dessas considerações. Aquelas que sabem emergir do jogo sem demasiadas cicatrizes insistem nele, as outras somos as flores do papel de parede a ver o ângulo e tantos, milhares de esquemas que redundarão em lágrimas na casa-de-banho ou toques furtivos na noite, ou passagens rituais, como os xamanes, por camas de brasas ardentes. Não dói, dizem, é mais uma questão de mentalização, de fortalecer o coração e os pés e avançar pelas escuras sendas da noite e do desejo. E amanhã, como diz a Scarlett, amanhã é outro dia.

11 comentários:

Patricia Almeida Alves disse...

que saudosismo, amiga!Já estás a pressentir a chega de uma primavera tua!
Eu tenho mais dois que tu... e ainda acredito no Pai Natal....loool

Anónimo disse...

Pois é, o problema é quando o amanhã é sempre hoje e o outro dia tarda em chegar. Aguardo desesperadamente por esse outro dia, acredito que talvez chegue amanhã. Depois, quando chega, percebo que amanhã já não é e fico à espera de amanhã, de outro dia. Só espero que um dia o hoje e o ontem não sejam sempre amanhã.

Passionária disse...

Gaja! Que bom é ver-te por aqui. Como vai a minha querida Prof. Dr.?
A propósito do Pai Natal, relembro à menina que a menina acredita nele porque o tem em casa, sim? Mas aparece, gosto sempre de ver as minhas amigas por aqui.
beijos e abraços:
i.

Passionária disse...

Caro(a) anónimo(a): se pensarmos que somos os hamsters dentro da rodinha a correr, correr e não chegar a lado nenhum (que por acaso até somos, mas pronto), a vida é demasiado difícil de levar. Há, apesar de tudo, a esperança. Há risos e amigos e conversas sobre o sentido da vida às quatro da manhã e a música e tantas outras coisas... Habituei-me a viver confortavelmente com a noção de que a felicidade é minha vizinha, que vejo uma ou outra vez nas escadas e cumprimento, mora perto. De resto encho a vida de pequenas felicidades. Sugiro-lhe que faça o mesmo, ou o 4-4-2 só vai derrotá-lo(a).

elisa disse...

Caramba, índice de identificação no máximo!
Mais uma bela reflexão que devidamente identificada, vou reencaminhar para umas amigas:)

Passionária disse...

Obrigada, Elisa, escrevo o que vejo, ainda bem que outras acham que é um retrato fiel...

Anónimo disse...

Acho que te vou telefonar hoje.
Beijos

Su

Anonymous disse...

Acho que mais do que nunca que já não é o sonho que comanda a vida, mas a solidão! é ela que leva a que procuremos um olhar no meio de um bar apinhado de gente, num passeio compacto de rostos que nada nos dizem.
sempre à procura de algo que nos acompanhe pela noite dentro, por vezes um simples toque furtivo como fala, uma troca de sms, e a noite já não parece tão escura, já se vislumbra o nascer de um novo dia, de uma nova esperança.
Somos peões num jogo que nós proprios inventamos e dos quais desconhecemos as regras, ou mudamo-las constantemente como faziamos em crianças, quando as coisas se complicavam para o nosso lado.
Mas nunca somos iguais ao que fomos ontem, há sempre algo que trazemos, algo que nos transforma mais um pouco, algo que fica.

Passionária disse...

Caro anonymous:

O jogo já existe há muitos milénios e as regras são sempre as mesmas: a sobrevivência do mais forte. Chamam-lhe selecção natural. E contra essa, bom, nada podemos. Agora, a propósito de poder, lembrei-me do poema do Eugénio de Andrade, Frente a Frente, se não estou em erro:

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte a mais vil,
isso podeis - e é tão pouco.

Enganou-se. Devia ter dito. nada podeis contra a natureza humana, nada...

Paulo Saraiva. disse...

Olá.
É com grande satisfação que comunico a descoberta deste local, onde alguém de nome Passionária(nome que poderá originar e indicar muitas e determinadas ideias)escreve sobre vários e acertados assuntos.
Voltarei...
Bjs.

Passionária disse...

Ó ..., muito obrigada, mas o menino sabe que eu estou sempre cheia de ideias e que as digo profusamente. Gostei da visita e aguardo futuras, evidentemente ;).