Aos vinte levamo-nos demasiado a sério, com a mania que somos adultos, sérios e responsáveis, aos trinta somos putos de catorze anos que por acaso trabalham e têm carreiras e percursos académicos e assim. As pessoas sérias estão em casa com os filhos pequenos a discutir as prestações e a conta do pediatra, com o coração intacto de quem foi feliz à primeira, sem ossinhos nem espinhas nenhumas. Não têm- não podem ter- a nossa capacidade de resistência, ou de nos rirmos de nós próprios.
Somos, aos trinta, gatos arranhados e com marcas de batalha, duros e manhosos, a olhar para o mundo com um certo desdém desconfiado: tudo, mas tudo, sabemos, pode acontecer. Não se acabam em penas e batalhas amargas por mobílias e filhos os votos de casamento? Não são os amores perfeitos miragens, ilhas, pontes quebradas, desfeitas algures no passado e na distância? Não chegámos ao presente sem marcas, nem nunca mais seremos os mesmos. Que o amor não nos engana, como diz o poeta, com a sua brandura.
Somos, como aos catorze anos, complicados, revoltados, aborrecidos. Ninguém diria, no nosso dia adulto de fatos e saltos e gravatas e reuniões importantes, de laptops e documentos os putos vulneráveis que somos na nossa noite. Choramos na casa de banho, bebemos demais, dissolvemo-nos em raivas, em risos, na música, no fumo de mais um cigarro. Discutíamos testes e notas, músicas e batons aos catorze. Nada mudou excepto talvez as conversas serem um pouco mais subtis, um pouco mais cultas, de resto somos os mesmos.
Funcionamos em grupo, também como antes, meninos para um lado, meninas para o outro. Há sempre um jogo, um esquema entre as vodkas pretas, a nossa vida emocional mede-se pelo número de SMS que recebemos e combinamos. Haverá, ou não, ao fim da noite, um táxi para voltar a casa, uma cama estranha, os momentos de náusea e solidão da manhã que nasce e nos traz para um novo dia quase intactos, quase como éramos antes.
Comemos, com a vodka ou os shots, as iguarias que servimos, que deixamos que nos sirvam: os douradinhos do amor a fazer de conta que é sexo, os rissóis do sexo a fingir que é amor, ou pelo menos qualquer tipo de emoção forte ou significativa. Jogamos o jogo, atiramos a linha, contamos, no 4-4-2 com as amigas e a determinação e as botas da moda e trinta e seis ou trinta e sete SMS que não temos coragem para apagar porque são um guia, um diário, uma testemunha para aquilo que não tem nome nem existe. Se nos tocam escuridão e na noite o toque existe? É verdade?
Não há, na noite, preocupações com a condição feminina, não nos damos a esse luxo. Estamos, demasiado para lá dessas considerações. Aquelas que sabem emergir do jogo sem demasiadas cicatrizes insistem nele, as outras somos as flores do papel de parede a ver o ângulo e tantos, milhares de esquemas que redundarão em lágrimas na casa-de-banho ou toques furtivos na noite, ou passagens rituais, como os xamanes, por camas de brasas ardentes. Não dói, dizem, é mais uma questão de mentalização, de fortalecer o coração e os pés e avançar pelas escuras sendas da noite e do desejo. E amanhã, como diz a Scarlett, amanhã é outro dia.