Lembro-me muito bem deste livro, que li quando tinha uns dezasseis anos e sei dizer exactamente porquê : o livro que li a seguir foi um dos livros da minha vida, daqueles que nos marcam mesmo como pessoas. Seria ele
O Fio da Navalha, de Sommerset Maugham.
Deste livro ficou-me a memória de um romancezito não muito excitante, passado durante a primeira grande guerra, entre um adolescente e uma mulher casada, mais velha. E de que ela, desculpem-me a frontalidade, era um bocado parva. Da maneira que as coisas estão contadas, parece que o diabo no corpo era só do rapazito. Ela, mesmo mais velha, era mole e indecisa, precisando da ousadia dele para declarar o desejo carnal.
Eu já na altura tinha ideias feministas (sempre tive, diga-se de passagem) e aquilo a modos que me caíu mal. Então só os homens é que tinham o monopólio do desejo? Então às mulheres não restava outra hipótese senão deixar-se arrastar e coagir até à cama? Ora bolas.
Na matriz cultural europeia, não restava muita opção às mulheres senão esta atitude: a de passivas e moles, fracas e indecisas. Porque a manifestar um tantinho que fosse de cooperação ou vontade própria no assunto era arriscado e mal-visto. Não é por acaso que temos a cultura cheia de mitos de bruxas que dançavam nuas e dormiam com o maléfico, de sucubas que sugavam a energia dos homens, de Liliths e mulheres fatais que empurravam os homens para a morte e para a desgraça com o seu apetite sexual insaciável. Não é por acaso que as loiras frígidas e "espirituais" entraram tanto na moda. Mulheres com curvas, sensuais e morenas, com apetite e vontade próprias eram perigosas e muito, mas muito más. Para os homens o apetite sexual "excessivo" era bom, natural e justo, uma marca de virilidade. Para as mulheres só podia ser um sinal de que eram más e só o diabo no corpo justificaria esse desejo. Sim, que deus não permitiria uma mulher que gostasse de sexo. Não era natural.
Quase um século depois do livro ser escrito, e apesar das coisas terem mudado,não mudaram assim tanto. Ainda é suposto os homens terem muitas parceiras e as mulheres poucos. O que, francamentre torna a matemática da coisa confusa e as mulheres em hipócritas, mas whatever. O sexo e o mal estão ainda, desgraçadamente, ligados um ao outro.
As culturas orientais, provando mais uma vez que em muitas coisas têm mais bom senso, têm uma abordagem completamente diferente . O sexo, como força geradora, é uma forma de comunicar com o divino ou, no caso do budismo, de meditação profunda. O sagrado feminino e o sagrado masculino completam-se e não existem um sem o outro. O diabo não está no sexo mas noutras coisas onde deve estar, como na crueldade e na cobiça e no mal. O quer nos faz pensar exactamente o quão civilizada a nossa civilização é, não faz?