terça-feira, janeiro 26, 2010

Só para relembrar, para que o último post não gere confusões desnecessárias:


Cama e mesa

Cresci a ouvir Roberto Carlos. Havia espalhadas lá por casa e pela casa dos meus avós uma data de cassetes e uns poucos de discos, a consequência natural de serem casas de muitas mulheres, e todas novinhas, nos vintes, já que as minhas tias têm cerca de dois anos entre cada uma, como se fosse um relojinho.
De todas as minhas tias, no entanto, a mais propensa a ouvir Roberto Carlos de manhã à noite era a minha tia T. Não sobrecarregada com a beatice da minha tia L, que levava o seu segundo nome, Dos Anjos, muito a sério e passava a vida a ser mordoma e enfeitar andores, sem a exuberância espanholada da minha tia A.R , dona e senhora de uma cabeleira de caracóis até à cintura e umas quantas rosas de seda para enfeitar a mesma ou o amor indiscriminado da minha tia A.A. por tudo o que se mexia e levava a chamar meus filhinhos até aos perus, e seguramente sem a austeridade contida da minha mãe, a minha tia era a mais tímida e romântica. As fotonovelas, que foram das minhas primeiras leituras (a Anita era muito fixe e tinha roupas fabulosas, mas nas fotonovelas beijavam-se- e na BOCA!!!) eram dela. O disco do Marco Paulo, cujas letras eu conhecia de cor aos cinco anos (ninguém ninguém, poderá mudar o mundo, ninguém ninguém é mais forte que o amooooooooooooooooor) era dela. Talvez por isso a associe tanto com o Roberto Carlos e associe o casamento dela com as noções infantis que tinha do amor romântico.
Pelos olhos de criança dos meus oito anos vejo-a vestida de branco e o meu tio de fato azul-escuro e todos estávamos felizes. Vejo o meu avô e a minha avó rígidos nas roupas de festa, as mãos calosas do meu avô nos meus ombros, a minha expressão ligeiramente espantada de olhos muito abertos e a segurar uma ponta do vestido de menina das alianças Vejo claramente a minha irmã, alta, só joelhos e cotovelos e magreza desajeitada do início da adolescência num vestido de laço e flores que odiava. Vejo ainda, apesar de não haver fotos (as que fizeram ficaram desbotadas por causa do fotógrafo ter feito asneira a revelá-las) as minhas tias A.A e A.R grávidas ao mesmo tempo, de pernas inchadas, sufocadas nesse dez de Junho, a brincarem sobre qual teria o bebé primeiro (foi a minha tia A.A, mas continua até hoje a chamar filhinho a tudo). Lembro a minha mãe de preto e uns óculos enooooooooooooooooormes que agora estão na moda a olhar para mim de lado não fosse eu fazer asneira (o que, admitamos, era a minha especialidade) e lembro-me de pensar: o amor é isto. Nos meus olhos de criança vejo-os como estão nessas fotografias de cores demasiado expostas e pensar que amar, casar, era aquilo, a família junta e feliz num dia de sol onde os adultos bebiam um bocadinho demais, as crianças corriam por todo lado na mãe de todos os sugar rushes e os noivos dançavam devagarinho ao som do Cama e Mesa do Roberto Carlos e se beijavam à frente de todos (na BOCA!!!!!).
Passados vinte e cinco- não, desculpem, vinte e seis- anos desse momento, e sabendo o resto da história (nascimentos e baptizados, mortes e zangas, sucessos e desgraças, pessoais e do resto da família) tenho pena de ter perdido a capacidade de olhar para o amor com essa inocência, com esse romantismo doce e simples. Porque é que o amor tem de ser vivido com o pathos de uma canção dos Muse? Perdemos, eu certamente perdi, a capacidade de ver o amor de forma simples, de acreditar que a felicidade eram beijinhos (na BOCA!!!) ao dançar agarradinha ao meu amor uma canção do Roberto Carlos. Parece-me eminentemente razoável, como razoáveis são, aliás, as utopias e demais sonhos impossíveis, que o amor tenha a aspiração de ser tudo na nossa vida: a cama que nos repousa, o pão que nos alimenta, a água que nos lava e purifica, o calor do sol na nossa pele naqueles dias de Verão em que, sem conhecermos o que o futuro nos reserva, estamos juntos e somos felizes.

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Catch 22

Entre aquilo que sabemos e aquilo que sentimos há mais coisas, como dizia Hamlet, que abarca a nossa vã filosofia. Entre aquilo que somos e aquilo que nos apercebemos há desfiladeiros de incertezas e ambiguidades não facilmente resolúveis, embrulhadas nos nossos estômagos, a ferir a nossa autoestima. Conhecem aquela velha pergunta do se uma árvore cai na floresta e ninguém está lá para ver faz ruído ou não? Nós as mulheres temos uma pergunta bizantina- e contudo tão chata de lidar- dessas: se não nos desejam continuamos a ser desejáveis? Não sei.
Como já disse acima ser e sentir são duas coisas que não são equivalentes nem simultâneas. Assim, entre aquilo que é a nossa autoconfiança e aquilo que são os factos há brechas dolorosas e difíceis de superar. Acreditem ou não, queiram ou não, a nossa autoestima é alimentada pelo desejo que despertamos no outro, e não há muita volta a dar-lhe.
Podemos dizer- que dizemos- podemos sentir- que sentimos- que nos vestimos para nós e não para os homens, que nos arranjamos e alindamos ( os ingleses têm uma palavra deliciosa para este processo, beautification) porque sim. Mas sejamos sérias e honestas, todas sabemos que é para os homens: os que temos, os que não temos mas queríamos ter, os que não queremos ter mas gostamos de provocar, etc. Não sei se as coisas com as mulheres homossexuais se processam assim, suponho que não, porque não se esforçam tanto (algumas) para atingir o modelo de feminilidade desejado pelos homens, mas com a malta a verdade, a completa verdade é que vivemos um bocado à mercê dessa atenção. E mais, os homens conhecem esta nossa fraqueza, exploram-na para atingir os seus objectivos, usando essa atenção como aliciante ou recompensa, se nos portámos suficientemente bem, de acordo com os seus desejos.
Na nossa sociedade patriarcal ( feliz ou felizmente, de acordo com o lado da barricada em que estiverem) esse embelezamento é obrigação nossa. Sermos bonitas, novas, férteis, receptivas é o nosso papel. Como diz a Lilly Alen, uma fame whore chata e irritante, mas que tem razão neste 22, aos quase trinta já a sociedade acha que a nossa vida acabou, que saímos todas as noites à procura do príncipe e bom, já não acreditamos que as coisas possam ser assim.
No video oficial da canção vai ainda mais longe, e eu peço desculpa por não o poder cá pôr, mas o youtube não deixa, mostrando o contraste entre aquilo que queremos ser, parecer nessas saídas à noite, e aquilo que somos, com rimmel borrado e maquilhagem a escorrer, com o cabelo em desalinho e a esperança funda e negra como as nossas olheiras. Teremos mesmo de perder, de achar que a vida acabou porque não temos, nem, aliás, nunca mais teremos, 22 anos? Devemos sentir-nos sexy e autoconfiantes com noites solitárias e batôm esborratado nos lábios? Pois não sei. Esse é o nosso catch 22, o problema que não se resolve nunca a nosso contento, mergulhando-nos em excepções e desapontamentos.
Lutei a minha vida inteira por um modelo de feminilidade mais positiva que esta definição pela negativa, só conseguida através da validação de um homem. Acho que devemos sem mais, ser para além de bonitas e desejáveis. É que, percebam, vamos estar mais tempo da nossa vida fora da categoria das desejáveis que dentro dela. Temos quê, quinze anos, vinte em sessenta, setenta que vivemos para ser núbeis e belas? É bom que tenhamos um plano alternativo ao ser giras e novas para viver bem, não vamos ter 22 aninhos para sempre. O ponto é se conseguimos fazer isso.





sábado, janeiro 09, 2010

The pursuit of happiness


Meti-me numa zaragata na universidade acerca deste assunto, isto circa 1995, e já nessa altura levei com a boca de um colega que, sem argumentos, me disse que nenhum homem aturaria uma feminista como eu. Discutia-se a hipótese do alargar a adopção a mulheres e homens solteiros e a casais gay e eu defendia a tese que sim senhor, devia ser permitido porque afinal, as crianças precisam é de quem goste delas e lhes dê colo, independentemente das preferências sexuais que esse dador de colo tenha. Agora, talvez uns quinze anos mais tarde, supostamente numa altura supostamente mais civilizada e esclarecida que os anos 90 neste cantinho à beira-mar plantado, dei por mim a ter a mesma discussão com mais ou menos os mesmos resultados. O tema era, como devem ter deduzido, casamento gay e possibilidade de adopção por parte destes casais.
Exaltei-me, confesso, desiludi-me também, por ver que gente que gosto pode ter ideias de que, por exemplo, a homossexualidade é uma doença mental ou que as crianças ficam irremediavelmente traumatizadas por terem dois pais ou duas mães. Como se não houvesse coisas piores que acontecem às crianças no seio de casais heterossexuais, como se não houvesse centenas,milhares de crianças a precisar de colo nas instituições, como se todos os casais heterossexuais se unissem por amor puro e sagrado e as relações funcionassem sem qualquer tipo de problema. Mas com o decorrer da conversa fiquei ainda mais triste por perceber que este preconceito era apenas parte de um maior, mas impronunciado: que o amor e a felicidade é só para os novos, os bonitos, os estilosos e os magros.
Temos, na nossa cultura, uma ideia geral daquilo que um casal deve ser, a média estatística, o arquétipo: ele é mais alto e mais velho, ela baixa, mais frágil, mais nova, espera que ele a guie e a proteja. São os dois jovens e tonificados, os seus corpos perfeitos fazem um casal como a cama do filho urso não é demasiado duro, nem mole, simplesmente perfeito. Tudo o que reside fora deste arquétipo está errado e não tem direito à existência.
Há lojas em que mal entro e onde raramente compro seja o que for, nem que seja presente, porque não reconhecem a minha existência, lojas como a Zara, ou a Mango, que fazem o 44 com sorte e já a chamar badochas imperdoáveis às que ousam usar esse número. As que o ultrapassam, então, devem é ir vestir-se à secção de campismo ou de cortinados. Como podem imaginar, essa atitude irrita-me profundamente, pelo que não gasto lá nem um dos meus esforçados cêntimos. Com gente que não me reconhece o direito à felicidade também não perco o meu tempo. É que sabem, com o meu peso, a minha altura, não encaixo no estereótipo, e verem-me, digamos, com um homem mais baixo ou mais magro de mão dada só provoca comentários marginalmente menos jocosos que os que provoca um casal gay. é triste, é errado, mas é mesmo assim.
De modos que me bati a minha vida inteira, que me continuo a bater pelo direito de todas as pessoas da procura da felicidade. Independentemente da sua cor, raça, feitio ou orientação sexual Se isso fez, faz ainda, com que ouça bocas parvas é irrelevante. Devemos erguer a voz e não ficar calados quando menosprezam as nossas opiniões.
Já lhes disse que estou orgulhosa este governo por ter aprovado esta lei? Estou mesmo. Mas nisto e só nisto, sim?